Ministérios da Saúde ao redor do mundo reconhecem o valor da saúde digital, conforme resolução da Assembleia Mundial da Saúde (OMS). Nesse sentido, alguns bilhões de dólares vem sendo investidos anualmente em aplicações digitais, notadamente no setor público. Devemos realizar uma grande comemoração por esses investimentos! Mas, depois que ela terminar, seria razoável avaliar se essa montanha de recursos segue diretrizes baseadas em evidências, ou no mínimo, nas melhores práticas. Apesar da abundância de aplicações digitais nas cadeias de saúde, a transparência é frequentemente tímida ou limitada com relação às recomendações e regulações em saúde. Dos milhares de Apps em saúde disponíveis hoje no mundo, mais da metade ‘não tem qualquer garantia ou evidencialismo técnico-científico’, ou pior: suas múltiplas terminologias e semânticas confusas ‘corroem a interoperabilidade, aumentam a fragmentação sistêmica e prejudicam os programas de cuidados contínuos’. “Podemos estar fazendo tudo errado do modo certo”.
Nessa direção, a OMS desenvolveu diretrizes baseadas em evidências que estabelecem padrões de cuidados, oferecendo referências para conteúdos utilitaristas para saúde digital. Essas orientações estavam disponíveis apenas em formato narrativo, exigindo um árduo processo para transformá-las em especificações objetivas. Para garantir que os países possam produzir soluções digitais pragmáticas, ela inseriu em 2021 os “kits de adaptação digital” (DAKs), concebidos para facilitar a utilização das melhores práticas na construção de aplicações médico-digitais.
“DAKs são documentações operacionais (neutras em termos de software), padronizadas e que destilam orientações clínicas em um formato que pode ser incorporado aos sistemas digitais”. Em um DAK específico, os requisitos baseiam-se em funcionalidades como personas, fluxos de trabalho, elementos de dados essenciais, algoritmos de apoio à decisão, lógica de agendamento, relatórios, etc. O resultado operacional (dicionários de dados e algoritmos de apoio à decisão) é disponibilizado para que implementadores os utilizem como pontos de partida para desenvolvimento de sistemas digitais. Esses componentes de dados (dentro dos DAKs) são mapeados para terminologias baseadas em padrões, como, por exemplo, a Classificação Internacional de Doenças (CID), facilitando a interoperabilidade dos dados clínicos. Um exemplo de aplicação DAK está detalhadamente descrito no paper da OMS (“Digital Adaptation Kit for HIV”).
Muitos dos problemas de gestão que identificamos hoje no SUS, por exemplo, são gerados por sistemas incompatíveis com as novas realidades do bioma saúde, muitas vezes mal desenvolvidos ou carregados de “temporalidade” (baixa flexibilidade sistêmica, com incontornáveis problemas de atualização dos fluxos de processos). Resolvem problemas em uma dimensão, mas criam novos em outras. Ninguém tem culpa de nada: a maioria dos sistemas utilizados pelo Sistema Único de Saúde foi desenvolvida em décadas passadas, quando as tecnologias de programação eram o melhor que tinha na época. Hoje, sistemas de informação precisam ter data de validade, data de atualização e data de descarte. Não podem ser ‘caixas fechadas’ de difícil manutenção, incompatíveis com um mundo que descobre novos elementos clínicos todos os dias. A grande maioria das aplicações estão alicerçadas em realidades técnico-cientificas ultrapassadas, cuja inovação operacional ou clínico-assistencial já trouxe novos e melhores desdobramentos. Esse é o papel da dinâmica dos DAKs: permitir que as evidências e experiências consagradas entrem rapidamente no circuito de implementação.
“O papel das intervenções de saúde digital no autocuidado se expandirá à medida que as habilidades e competências digitais das pessoas melhorarem e elas possam buscar, entender, avaliar e usar dados e produtos de saúde”, explica o paper “Expanding people-centred primary health care with digital adaptation kits for self-care interventions”, publicado em setembro/2023 na revista The Lancet. O texto mostra a importância dos Digital Adaptation Kits para suporte ao Autocuidado, que passa a ser o eixo de convergência de todos os sistemas de saúde no primary care. Os DAKs foram desenvolvidos para ampliar a experiência, o letramento e a subsistência do pacientes quando ele está circunstancialmente ou temporariamente distante das cadeias de saúde. A trilha aberta pela OMS em seu projeto SMARTS, mostra como os DAKs podem ajudar na atenção primária e no autocuidado. Um DAK é um conjunto de ferramentas e recursos que fornece orientação e conteúdo para o desenvolvimento de sistemas digitais na saúde. Trata-se de uma cesta de recursos, alinhados com as recomendações da OMS, ou de qualquer outra entidade médica, voltada a disponibilizar rapidamente aplicações digitais para médicos, pacientes e cuidadores (ou os três juntos trocando informações).
Uma sequência de regras para proteger pessoas propensas a falta de equilíbrio, por exemplo, poderia ser: (1) retire tapetes do caminho do paciente; (2) Evite andar de meia; (3) Dê preferência ao uso de calçados de borracha; (4) Não deixe pisos encerados ou molhados no fluxo de habitual do usuário; (5) Mantenha os locais bem iluminados; (6) Afaste móveis que dificulte a locomoção; (7) Use tapetes antiderrapantes dentro e fora do banheiro, principalmente no local do banho; (8) No caso de cadeira de rodas, confira se as rodas estão travadas antes de utilizá-las; (9) Fique sempre perto de um aparelho celular; (10) Faça uma lista das coisas que precisam ser feitas hoje; (11) Confira se a ingestão de medicamentos foi cumprida; etc.
Um DAK sistematiza essa sequência, hierarquiza seu fluxo, transforma em linguagem acessível aos vários perfis de paciente, insere pontos de controle (alertas) e permite que ela seja transformada em uma aplicação digital para uso diário. Outrora, programar e codificar essa sequência poderia ser demorado, com baixa capacidade de personalizá-la a cada grupo de usuários. Hoje, com as ferramentas de LLMs (ChatGPT), o aplicativo pode ficar pronto em minutos. Qualquer fluxo clínico-assistencial na oncologia, dermatologia, gastroenterologia, ou mesmo acompanhamentos pós internação, ou pré-natal, ou no apoio ao autocuidado mais rotineiro, pode ser desenvolvido pelo protocolo de apoio (DAK), sendo automatizado e transformado em Apps. Cada DAK possui um dicionário de dados detalhado contendo uma lista abrangente de elementos de dados, que são mapeados para CATs (classificações e terminologias padronizadas) apropriadas ao acesso aberto. O mais importante: os kits abrem uma janela eficaz para reformular e reorientar as aplicações sempre que necessário, principalmente com o uso de software aberto.
No fundo, os DAKs objetivam catalisar a ‘qualidade dos cuidados e facilitar o uso e a interoperabilidade dos dados’. Para a OMS, a regra prática é de 80% de conteúdo genérico e 20% com contextualização local. Por exemplo, aproximadamente 80% das recomendações das diretrizes da OMS aplicar-se-ão à maioria dos países, mas 20% poderão exigir adaptação ao contexto local, tais como a adaptação aos serviços de saúde.
Considerando que os países estão em diferentes fases de maturidade na adoção de sistemas digitais, os DAKs podem ser aplicados em vários cenários. Países podem utilizá-lo para atualizar o conteúdo se alinhando às recomendações da OMS e/ou de diretrizes nacionais. Outras nações, que ainda não digitalizaram seus sistemas, podem usar os DAKs para iniciar esse processo (ponto de partida). O “Antenatal Care (ANC) Tracker”, um rastreador de autocuidado para atenção pré-natal durante a gravidez (DHIS2 Tracker), foi desenvolvido em conformidade com o protocolo DAK da OMS.
No final de junho/2023, a OMS comunicou a conclusão de um projeto-piloto com o aplicativo Frontline (plataforma de mensagens gratuita e de código aberto) no Iraque. Iniciado em abril e utilizando a engenharia dos DAKs, o projeto foi implantado utilizando as diretrizes da OMS para a Gestão Integrada de Doenças Infantis (AIDI), sendo alinhado com a competências do Ministério da Saúde do Iraque. Foi implementado em HL7 FHIR, usando o Android FHIR Software Development Kit (SDK). No total, foram realizadas 597 consultas médicas com o Frontline, com os profissionais de saúde relatando que a ferramenta era extremamente/moderadamente útil em 84% das vezes (73% afirmando ser muito-viável/viável de implementar). Em Camarões (segundo país-piloto), o projeto foi concluído no final de agosto de 2023, estando na fase de testes de usabilidade do Frontline.
Todos os anos, cerca de 2,5 milhões de crianças morrem no primeiro mês de vida, sendo que 98% das mortes ocorrem nos “países em desenvolvimento”. Estima-se que as infecções neonatais, incluindo a sepses e a meningite, causem mais de 350 mil mortes por ano, sendo 150 mil atribuídas à pneumonia. A grande maioria das mortes de recém-nascidos ocorre em países de baixo e médio rendimento. Nesse sentido, urge voltar a pensar na expansão dos protocolos clínicos, um tema que volta e meia retorna, mas logo desaparece no debate dos Sistemas de Saúde. Os DAKs vêm nessa direção, melhorando e facilitando a implementação de protocolos, regulações e melhores práticas capazes de reduzir as mortes evitáveis. Os DAKs incluem componentes facilitadores, como fluxogramas e diagramas, que podem auxiliar a “dar a largada” na digitalização dos processos. Eles ajudam a traduzir sistematicamente as orientações em conteúdo estruturado e que seja adaptável ao país.
Todas as principais entidades globais, seja na Saúde ou Educação, aumentaram sua velocidade de adotar “protocolos digitais baseados em ontologia consagrada”, principalmente quando estes podem ser usados em conjunto com plataformas Generativas (LLMs). A Unesco, por exemplo, publicou em abril de 2023 seu “ChatGPT and Artificial Intelligence in Higher Education: Quick Start Guide”, um roteiro explicando como o ChatGPT pode ser usado no ensino superior, descrevendo as principais recomendações e protocolos para o uso da plataforma na graduação superior. Na área de Saúde, notadamente nas implementações de protocolos clínicos, os DAKs podem ser acelerados com o uso das LLMs, viabilizando agilidade e força para personalizar cada aplicação clínica, principalmente no auitocuidado. Outro estudo, publicado em setembro de 2023 pela The Lancet (“ChatGPT: promise and challenges for deployment in low- and middle-income countries”), mostra parâmetros diretos em que as LLMs podem fazer a diferença na redução dos mais de 3,5 bilhões de indivíduos no mundo que não tem acesso aos serviços essenciais de saúde (fonte: OMS).
Ou seja, é o momento de voltar a pensar com seriedade na intensificação dos protocolos clínicos de saúde pública. Plataformas de IA, com seu arsenal de linguagens naturais, podem facilmente transformar narrativas longas, desafiadoras ao usuário comum e quase sempre difíceis de serem transformadas em protocolos digitais em mecanismos simples e diretos de adoção. Exemplos de utilização dessa amálgama (DAKs + LLMs) são inúmeros: busca de informações em saúde; comunicados e alertas epidemiológicos; eLearning (letramento em saúde); mapeamento de geolocalização de unidades de atendimento; comunicação médico-paciente; suporte a decisão do paciente; rastreamento de saúde pessoal (pré-diagnóstico); suporte a prestação de serviços à distância (telemedicina); coordenação de encaminhamento; gerenciamento de correlações em resultados de exames, etc. Os DAKs podem garantir que as intervenções digitais não causem danos, ou diminuam a assertividade das práticas de autocuidado.
“A primeira regra de qualquer tecnologia utilizada em saúde é que a automação aplicada a uma operação eficiente aumentará a sua eficiência. Mas a segunda regra também é importante: a automação aplicada a uma operação ineficiente aumentará a sua ineficiência”. Estamos correndo e avançando na digitalização em saúde. Isso é bom. Mas é fácil voltar para trás e fazer coisas que consomem mais tempo e geram mais erros do que aquelas que já digitalizamos. Não basta acertar um alvo fixo, é preciso acertá-lo em movimento, em fluxo, em constante transformação. O ensaista irlandês C.S. Lewis, autor do hilário “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz”, cunhou uma expressão quem bem poderia explicar os alvos-móveis da saúde digital: "Você não pode voltar e mudar o começo, mas pode começar de onde está e mudar o fim, todos os dias."
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)