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11% das decisões médicas diagnósticas já são apoiadas por IA

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Medicina Baseada em IA

Imagine um mundo sem profundidade, bidimensional, onde qualquer representação pictográfica tem um único plano. Antes de 1415, todas as pinturas, artes plásticas e desenhos arquitetônicos feitos pelo homem até então eram representações espaciais erradas e falsas da realidade dimensional. O mundo das artes e das imagens gráficas era bidimensional. O senso de profundidade não representava o mundo de uma forma realística e tridimensional, mas meramente orientativa e aproximada. Um arquiteto florentino, Filippo Brunelleschi (1377-1446), mudou tudo. Obcecado pela ideia de descobrir regras tridimensionais geométricas, mostrou a todos o seu conceito inovador de Perspectiva Linear. A vida humana, e, principalmente, as artes plásticas, nunca mais seriam as mesmas. Ele introduziu uma maneira de representar o mundo tridimensional em uma superfície bidimensional, e o fez de maneira tão realista e natural que elevou a pictografia a um patamar nunca antes alcançado. A inovação desse jovem arquiteto transformou a maneira como as pessoas passaram a visualizar a pintura, arquitetura e até a educação formal. Usando pontos e linhas de fuga (que hoje são ensinados no Ensino Fundamental), Brunelleschi revolucionou a maneira de ‘enxergar’ o mundo. Sem ele, existem dúvidas de que Leonardo da Vinci teria encantado a todos com sua "A Última Ceia", ou Rafael, com sua A Escola de Atenas". Filippo mudou não só a técnica, mas o “empoderamento individual”. Ao fornecer aos artistas uma nova forma de representação realística, empoderou qualquer indivíduo a retratar ambientes e formas até então impossíveis de serem realizadas. Seus estudos sobre perspectiva reinventaram a arquitetura, a construção civil e as artes plásticas.

Em pleno e confuso ano de 2023, estamos assistindo a um outro modelo de empoderamento individual, desta vez vindo dos LLMs (grandes modelos de linguagem), conhecidos como Inteligências Artificiais Generativas (ChatGPT, Bard, etc.). A revolução em curso não ocorre somente na cosmologia das artes, mas também nas ciências médicas e nos sistemas clínico-assistenciais; aliás, ocorre em qualquer cosmologia que inclua agentes humanos. Em setembro/2023, o report “Clinician of the Future 2023 - Elevating global voices in healthcare”, publicado anualmente pela Elsevier, mostrou mais uma vez a visão opinativa de ‘milhares de médicos e enfermeiros em mais de 100 países’. Este ano, no entanto, nas questões relativas à “Atitude dos médicos em relação à IA”, houve surpresa no resultado: “11% das decisões clínicas já são atualmente assistidas por ferramentas de IA”.

Mais do que isso: 48% dos profissionais disseram ser favoráveis a que os ‘médicos utilizem IA em sua função cotidiana’, com 51% deles considerando ‘desejável que a Inteligência Artificial esteja presente em toda a formação médica’. “Uma das maiores mudanças que vimos no setor da saúde em 2023 foi o surgimento e o rápido crescimento da IA, especialmente das ferramentas de IA generativas como ChatGPT e Bard. Para garantir que tivéssemos uma imagem representativa da experiência atual dos médicos e das expectativas do futuro, fizemos uma série de perguntas sobre as suas atitudes em relação à IA”, explica o relatório. O resultado da pesquisa mostra que, antes mesmo do ChatGPT completar seu primeiro aniversário, ou de haver qualquer regulação local, ou mundial sobre o tema, mais de 10% da comunidade médica já aderiu a esse modelo de plataforma.

Trata-se de uma nova “perspectiva linear” invadindo as “coisas” da comunidade médica. Vamos passar a olhar as Ciências da Vida em outras dimensões. E bem que precisamos de novas perspectivas: os Sistemas de Saúde estão em crise e causas não faltam, embora três delas são unanimidades: (1) Crescimento demográfico e expansão da expectativa de vida, gerando 8,2 bilhões de pacientes, que, em geral, estão sôfregos por receber assistência médica de sistemas que notadamente não suportam mais essa carga; (2) Déficit de profissionais de saúde, que, segundo a OMS, só cresce. O aumento médio do número de médicos, enfermeiros e parteiras entre 2010 e 2020 nos 53 Estados-membros da Região Europeia foi de 10% (só a Alemanha teve crescimento populacional no primeiro semestre de 2022 de 1%); e (3) Modelos de gestão da saúde superados, consumidos por severa entropia e resistentes a metamorfose digital. 

Muitos médicos e pesquisadores movem-se com afinco, passando a avaliar com intensidade as novas plataformas de IA. Em alguns casos, os resultados são surpreendentes: o estudo “ChatGPT and Generating a Differential Diagnosis Early in an Emergency Department Presentation”, publicado em setembro/2023 pelo journalAnnals of Emergency Medicine,’ descobriu que o ChatGPT pode não só diagnosticar, como também apoiar o diagnóstico de médicos treinados. Pesquisadores do Hospital Jeroen Bosch, na Holanda, inseriram anotações médicas e informações anônimas de 30 pacientes nas duas versões do ChatGPT, incluindo exames, sintomas e resultados laboratoriais. Eles encontraram uma convergência de 60% entre a lista de possíveis diagnósticos dos médicos de emergência e as avaliações do GPT. “Descobrimos que o ChatGPT teve um bom desempenho na geração de diagnósticos prováveis, bem como na sugestão de opções mais plausíveis. Também encontramos muitas sobreposições com a lista de diagnósticos prováveis ​​dos médicos. Simplificando, isso indica que o ChatGPT foi capaz de sugerir diagnósticos médicos da mesma forma que um médico humano o faria, explicou Hidde ten Berg, do departamento de medicina de emergência do Jeroen Bosch e um dos autores do estudo. Os pesquisadores obtiveram diagnóstico correto em 87% das listas principais, enquanto o ChatGPT (3.5) obteve diagnóstico correto em 97% das vezes (87% da versão 4.0 do ChatGPT).

“Às vezes, as estradas que não levam a lugar nenhum são aquelas que devemos entrar e nos perder para nos encontrar novamente, ou para encontrar o imperdível”, diz a citação hindu. Dúzias de estudos sobre os LLMs estão sendo publicados em todos os importantes journals médicos do mundo. “Estamos à beira de uma revolução na saúde digital, mas milhões correm o risco de serem deixados para trás”, explicou o Hans Henri P. Kluge (Diretor Regional da OMS Europa) no segundo simpósio da OMS sobre o tema (“Future of Digital Health Systems in the European Region”), realizado em Portugal em setembro último. “Está muito claro que a Saúde Digital é o presente e o futuro dos sistemas de saúde, por isso DEVEMOS garantir que não haja vencedores ou perdedores, e que todos se beneficiem e ninguém seja deixado para trás. A inteligência artificial está remodelando o mundo como o conhecemos – incluindo os cuidados de saúde. Oferece avanços sem precedentes na saúde, desde diagnósticos mais eficientes até tratamentos mais seguros e melhor vigilância das doenças. Ela tem o potencial de aumentar o envolvimento do paciente em seu próprio cuidado, bem como aumentar a velocidade e reduzir o custo do desenvolvimento de novos tratamentos farmacêuticos”, continuou Kluge no encerramento do evento.

Eric Topol, um dos mais renomados pesquisadores dos EUA, publicou com outros colegas um estudo (“Randomized Controlled Trials Evaluating AI in Clinical Practice: A Scoping Evaluation”) com a resenha de 84 ensaios clínicos randomizados (ECR) contendo práticas médicas com adição de IA. Talvez seja o mais relevante estudo sistêmico de ensaios clínicos envolvendo algoritmos de IA, com dados publicados entre janeiro de 2018 e agosto de 2023. A conclusão geral do estudo revelou que “82,1% dos ensaios relataram resultados positivos para seu desfecho primário, destacando o potencial da IA ​​para melhorar vários aspectos dos cuidados em saúde”. Os ensaios avaliaram predominantemente sistemas de aprendizagem profunda em imagens médicas, sendo a gastroenterologia o campo mais comum de estudo. No entanto, a avaliação também identificou áreas que requerem mais investigação, tais como os ‘ensaios multicêntricos’. “O panorama existente de ensaios clínicos randomizados sobre IA na prática clínica demonstra um interesse crescente na aplicação dessas plataformas ​​em diversos campos médicos. Embora a maioria dos ensaios relate resultados positivos, pesquisas mais abrangentes continuarão a ser essenciais para compreender plenamente o impacto da IA ​​nos cuidados de saúde”, concluiu o estudo

Pesquisar e avaliar os resultados da algoritmização na saúde sempre será uma forma de “imperativo evidencialista”. Se caminhamos para uma “Medicina Baseada em IA”, é preciso estudar as evidências, os indicativos e as manifestações científicas caso a caso. O maior ensaio utilizando IA, realizado até setembro/2023, foi para detecção do câncer de mama, com mais de 80.000 participantes na Suécia. A leitura assistida por IA “reduziu a carga de trabalho em 44%, sem aumento na taxa de falsos-positivos (1,5%)”. Esses resultados foram reforçados por outro relatório, também realizado na Suécia (não randomizado), com mais de 55.000 mulheres, mostrando que a adição de IA detectou 4% mais cânceres (com menos resultados falsos-positivos) e 50% menos de tempo de leitura do radiologista. Como ressalta o próprio Topol: “Isso é particularmente muito impressionante”.

A usabilidade das ferramentas em LLMs assusta, principalmente quando na mão dos pacientes. Um exemplo foi noticiado em boa parte da imprensa mundial: reportagem do “Today Show”, programa da rede norte-americana NBC, sobre o menino Alex. Durante o bloqueio da Covid-19, sua mãe percebeu que Alex, então com 4 anos, sentia dores inexplicáveis, mastigava coisas incomuns, arrastava o pé esquerdo, etc. O que se seguiu foi uma busca de 3 anos pelo diagnóstico dos sintomas, em uma jornada materna que envolveu 17 médicos e dentistas. Em pânico, ela inseriu dados dos sintomas de Alex no ChatGPT. “Eu passei a noite no computador informando todos os registros que tinha, incluindo os laudos de ressonância magnética”, explicou ela. Quando a plataforma sugeriu o diagnóstico de síndrome do cordão umbilical (espinha bífida oculta, que leva à síndrome de medula presa), ela procurou um novo neurocirurgião, que aceitou o diagnóstico. Alex passou por uma cirurgia para corrigir a síndrome da medula presa, estando hoje em boa recuperação. Não será surpresa se milhões de pessoas em iguais condições seguirem pelo mesmo caminho. Por isso é assustador e incontrolável. Tudo ficou frágil. Mas não frágil como uma porcelana, mas como um tropeção a beira do abismo.

Toda essa revolução está apenas começando. Manish Patel, da Jiva.AI, opina com sagacidade: "se o passo 1 é analógico e o passo 100 é um robô dando à luz a um bebê, estamos agora em algum lugar entre os passos 2 e 4". Estamos no início da gênese, nos primórdios da origem, na alvorada de uma ‘revolução de saberes’. Precisamos começar a ver além do zeitgeist ChatGPT e olhar para o quadro geral. Todas as nações estão atingindo as limitações de seus sistemas de saúde. Todo e qualquer desempenho sistêmico razoavelmente bom em saúde está ameaçado pelas curvas de crescimento demográfico e pelo impacto do envelhecimento populacional.

Bilhões de pacientes sufocam todos os dias as curvas de acesso à saúde. Nos países de baixos rendimentos, como o Brasil, os cuidados de saúde inclusivos serão cada vez mais inatingíveis. Não basta mais colocar o paciente no ‘centro do sistema’, é preciso também ensiná-lo a sair do centro quando nele não precisar estar. É preciso dar atenção urgente ao Letramento em Saúde, Autocuidado, Inclusão Tecnológica, Absorção e Uso de Plataformas de IA, Reforma nas bases do Mutualismo, Regulação Predicativa, e, acima de tudo, é preciso a consciência do Estado de que os sistemas de saúde são limitados e insuficientes para as demandas deste século. A inteligência artificial das LLMs está precipitando as formas como interagimos com os sistemas de saúde. Brunelleschi está “vivo” e voltou para ampliar nosso empoderamento. Agora é o momento de transformar os cuidados em saúde. É necessário praticar a primavera, não só observá-la.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)