Alfred North Whitehead (1861-1947), matemático e metafísico britânico, fundador da escola “filosofia do processo”, observou: "A civilização sempre avança pela extensão do número de operações importantes que podemos realizar sem pensar nelas". Um dos mais brilhantes pensadores do início do século XX, Whitehead mostrou que nada está plenamente parado, mas sempre em movimento, com processos servindo como blocos de construção da realidade. Ao invés de pensar nas coisas como entidades estáticas, que já "são", ele argumenta que todas as coisas estão sempre "tornando-se", ou seja, em constante processo de mudança e evolução (“Toda realidade é dinâmica e sempre está num estado de tornar-se em vez de um estado de ser").
A obstetra e ginecologista Andrea Partida (Oklahoma, EUA), adora a sua nova assistente. Os 15 ou 20 minutos que ela gastava na escrituração de cada visita de pacientes agora são três minutos. Da mesma forma, as duas ou três horas que ela perdia fazendo análises gráficas fora do horário da clínica agora não passa de uma hora. Todo esse tempo economizado permite que ela atenda de dois a cinco pacientes a mais por dia, preste um melhor atendimento a cada paciente e se envolva mais na liderança hospitalar da Integris Health, onde trabalha. “Tenho um melhor equilíbrio pessoal e profissional com minha família, saindo do trabalho e chegando em casa mais cedo", diz Partida. Sua assistente não é uma pessoa, mas uma inteligência artificial (IA). Whitehead diria que a profissão médica está prestes a se tornar um ‘bloco de construção para uma nova realidade clínica-assistencial’.
O estudo “We Asked Doctors Using AI Scribes: Just How Good Are They?”, publicado em 7/8/23, perguntou a médicos o que achavam de utilizar um AI Medical Scribes (AIMS), uma plataforma inteligente para eliminar a carga escritural da função médica. Escribas virtuais automatizados vão simplificar as interações médico-EHR, reduzindo a quantidade de tempo gasto na documentação. Em comparação com a inserção manual das anotações do paciente, o uso de um ‘escriba médico em IA’ pode ser até três vezes mais rápido. A Dra. Partida usa o IRIS, da OnPoint Healthcare Partners, mas não faltam competidores nesse mercado. Os AIMS são projetados para “automatizar a entrada onerosa de dados médicos”, utilizando os LLMs (grandes modelos de linguagem), como as IAs generativas (ChatGPT). Várias outras empresas se acotovelam em busca de espaço nesse colossal mercado, como Abridge, Ambience Healthcare, Augmedix, DeepScribe, Nuance (Microsoft), Suki, HealthScribe (AWS), Tali (acompanhe no vídeo uma teleconsulta utilizando essa aplicação), dentre outras. Quase todos já estão em conformidade com a HIPAA (Health Insurance Portability and Accountability Act), as normas de privacidade e segurança da indústria norte-americana para informações em saúde. Da mesma forma, muitas dessas aplicações utilizam vários idiomas, tanto para o médico como para o paciente, sendo que algumas, como Chartnote AI Scribe, por exemplo, explica que sua ferramenta utiliza tecnologias de criptografia de ponta para garantir a proteção de dados confidenciais. A conferir.
Esta é a última geração de profissionais de saúde a usar dedos (digitalização) ou mãos (escrituração) para documentar o histórico do paciente. Os AI Medical Scribes tendem a ser muito mais do que imaginamos, sendo capazes de organizar, analisar, hierarquizar, graficar e sintetizar toda e qualquer massa de dados clínicos que o profissional necessitar. Não se trata apenas de uma aplicação voltada a “transcrição e editoração da oralidade médica”, mas de um curador de todas suas atividades, principalmente aquelas que envolvem a sua relação com o paciente. Essas ferramentas registram visitas de pacientes, geram notas para tratamento, histórico, medicação, cobrança, etc. As iterações escriturárias anteriores combinavam IA com ‘escribas humanos externos’, que podiam acessar (remotamente) e verificar anotações e avaliar os dados registrados nos diálogos. Hoje, os AIMS são cada vez mais automatizados, sem a necessidade de escrituradores humanos.
"O Santo Graal da medicina agora é reduzir o burnout, ao mesmo tempo em que mantém ou melhora a produtividade e a qualidade. Os escribas digitais têm o potencial de fazer exatamente isso", diz a Dra. Patricia Garcia, CIO de Atendimento Ambulatorial da Stanford Health Care, que utiliza o AIMS da Nuance. Embora boa parte dessas plataformas ainda esteja no mercado em modelos de ‘testes-acompanhados’, sua explosão comercial é eminente e evidente, principalmente porque as novas versões são cada vez mais assertivas. A documentação clínica está no “ponto de virada” da medicina neste século, principalmente pelo crescente uso dos EHRs (prontuários digitais dos pacientes). Mas, do mesmo modo, ela está associada a vários efeitos, como ao (1) esgotamento do clínico do profissional; o (2) aumento da carga cognitiva; a (3) perda de informações; e a (4) eclosão cada vez maior de distrações no ambiente de trabalho. Um AIMS é um sistema de ‘documentação clínica automatizado’ capaz de capturar a conversa médico-paciente e, em seguida, transcrever, filtrar, analisar, separar e documentar o encontro, permitindo que o médico se abstenha do computador para registrar a consulta. Basta ligar o smartphone ou tablet e solicitar autorização do paciente. À medida que a consulta inicia, o médico acessa o ícone do aplicativo para iniciar ou finalizar a gravação.
"A relação com o paciente é o aspecto mais importante da medicina", diz Raul Ayala, médico do Adventist Health (California, EUA) que utiliza o Augmedix. Mas, segundo o estudo “Medscape Physician Lifestyle & Happiness Report 2023”, essa relação está cada vez mais ‘infectada’ pelo esgotamento dos médicos, sendo a causa número 1 dessa exaustão o acúmulo de tarefas burocráticas. Os AIMS são desenvolvidos para reconhecimento automático de voz, utilizando processamento de linguagem natural e aprendizado de máquina. São cada vez mais usados para aliviar esse acúmulo, principalmente nas consultas presenciais ou em telehealth.
No início, seu uso deve estar voltado ao aprendizado do médico. A curadoria do AIMS registra o encontro, identifica o histórico do paciente, a descrição de suas queixas (comparando com passagens anteriores), avalia o plano de tratamento, orienta pedidos e tarefas, além de prescrever medicamentos, encaminhamentos e fazer pré-autorizações solicitadas pelo médico-usuário. O aprendizado é também a fase em que o médico customiza a plataforma para seu modelo de atendimento e suas demandas informacionais. Esse construto é armazenado no EHR do paciente, sendo que em alguns casos todo o material é revisado e reavaliado pelo próprio médico (ou por outro de sua confiança). O custo de utilização do AIMS ainda é alto: o HealthScribe da Amazon custa US$ 0,10 por minuto. Para 1.000 transcrições de consultas/mês (média de 15 minutos), o custo total mensal é de aproximadamente US$ 1.500. A alta demanda deve reduzir os valores em poucos meses.
Como relata o estudo “We Asked Doctors Using”, citado acima, a precisão dessas anotações continua sendo uma questão em aberto, diz Garcia, principalmente porque a precisão pode ser difícil de definir. "Se você pedisse a cinco médicos para escrever uma nota com base no mesmo encontro com o paciente, você receberia cinco notas diferentes. Isso dificulta a avaliação dessas tecnologias de forma cientificamente rigorosa", explica ela. Assim, a verificação (ônus) do AIMS sempre estará dependente das observações do médico-usuário. Versões totalmente automatizadas podem gerar notas muito mais rapidamente. Jack Shilling, cirurgião ortopédico da Cooper University Health Care (New Jersey, EUA) usa a Plataforma DAX (Nuance), que possui um recurso (DAX Express) que utiliza o GPT-4 (OpenAI), fornecendo ao cirurgião um rascunho de suas notas clínicas em apenas alguns segundos. Shilling explica que pode precisar editar levemente as transcrições de suas conversas com os pacientes. "Quando alguém me diz quanto tempo dói o joelho, uma pequena variabilidade nas palavras transcritas é tolerável", diz o médico. Mas para anotações de exames físicos e leituras de raios-x, por exemplo, ele dita diretamente no aparelho, falando mais próximo e sendo menos conversacional, mas exato em sua fala.
A maioria dos provedores de AIMS utiliza ‘IA proprietária’, como a DeepScribe, que ouve e grava em tempo real por meio de um aplicativo iOS. A gravação é transcrita e processada para identificar detalhes clínicos cruciais, organizados em um formato de nota SOAP (protocolo para troca de informações estruturadas) e incorporados ao EHR (os AIMS, em geral, são interoperáveis com vários modelos e marcas de EHRs). Um mecanismo de ‘controle de qualidade humano’ garante a precisão das notas, melhorando continuamente o sistema (aprendizado de máquina). Algumas dessas plataformas identificam e mitigam vazamentos (ruídos) no ciclo da consulta.
Sempre é bom lembrar que a adoção dos AIMSs não é apenas uma questão de aumentar a produtividade, mas de ‘transformar o núcleo da profissão médica’. Ao eliminar as tarefas tediosas, demoradas e de trâmites administrativos (em geral inúteis), as soluções de IA-LLMs oferecem aos médicos a liberdade de se concentrar em seu principal chamado: fornecer cuidados compassivos e centrados no paciente. As plataformas vão reacender a relação médico-paciente, incrementando a disposição do médico de estudar cada caso e promover um ambiente focado na pessoa e não no fluxo do atendimento. Nesse sentido, o grande beneficiário será sempre o paciente. Médicos gastam cerca de 1,84 horas por dia para concluir uma documentação de EHR (fonte, 2023: JAMA Internal Medicine). Expandindo a uma semana de trabalho (cinco dias), médicos gastam em média de 9,2 horas por semana apenas com documentação. Essa escrituração está contribuindo para o ‘aumento das taxas de esgotamento médico’ (burnout), que subiu de 42% há cinco anos para 53% em 2023.
O estudo “Needs and expectations for artificial intelligence in emergency medicine according to Canadian physicians”, publicado em julho de 2023 (BMC journal) e realizado por pesquisadores da Dalhousie University (Halifax, Canadá), mostra uma pesquisa eletrônica nacional, transversal (dois estágios em método misto), com médicos canadenses da área de emergência. A análise, realizada entre janeiro a maio de 2022, identificou a percepção dos profissionais sobre “as melhores utilizações e aplicações de IA no campo clínico”. O resultado é uma lista que classifica para os próximos dez anos a prioridade de ferramentas em IA para esses profissionais. O primeiro item da lista, ou seja, a máxima prioridade para os médicos consultados, é ter “ferramentas de IA para documentação” (confira na figura).
Não importa qual o país, essa resposta será muito parecida em quase todos eles. Médicos estão cansados, esgotados, alguns desiludidos com a profissão, outros extenuados com a escrevinhação e digitalização, sendo que uma boa parte deles tornou-se ativista “contra as inteligências artificiais”. Apesar de todo esse desencanto, estamos entrando na Renascença da profissão médica. O “renascimento médico” pode ser comparado ao Renascimento entre os séculos XIV e XVII, um período que desafiou todas as noções preexistentes. Quando parecia que a ‘medievalidade’ seria eterna, emergiram novas compreensões que transformaram a Europa e o Ocidente. Galileu e Copérnico desafiaram a visão tradicional do universo, Gutenberg transformou a escala do conhecimento humano, Dante, Chaucer, Erasmo de Roterdã e Thomas More refundaram a essência humanista e Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael e Ticiano colocaram de joelhos as técnicas artísticas, superando e transformando o sentido da arte.
A nova era da Inteligência Artificial vai redefinir os limites do que é possível no campo médico. "A inteligência é a rapidez de apreensão, diferente da habilidade, que é a capacidade de agir sabiamente sobre as coisas apreendidas", explicou Whitehead. Para ele, a inteligência é a capacidade de rapidamente compreender ou assimilar informações; e habilidade é nossa capacidade de usar essa compreensão de maneira sábia ou eficaz. As ferramentas de AIMS adicionam uma "inteligência extra" à prática médica, mas, acima de tudo, permitem que o médico adicione muito mais habilidade para fazer bom uso da inteligência conquistada.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)