Tenho idade suficiente para ter participado do sistema médico antes da Segunda Guerra Mundial. E não havia terceiros. A diferença mais óbvia é que quando você ia ao médico ou ao hospital, a primeira pergunta que lhe faziam antes da guerra era: O que há de errado com você? Quando você vai a um hospital ou ao médico hoje, o primeiro que lhe perguntam é: Qual é o seu seguro?” (Milton Friedman, 1912-2006).
A crise global dos Seguros de Saúde é crescente e, por enquanto, irresolvível. Receita e lucratividade são dimensões cruciais no desempenho de qualquer Plano de Saúde, seja nos EUA ou no Brasil. Embora os dados do mercado norte-americano tenham mostrado uma trajetória saudável na última década, uma análise realizada pela Deloitte Center for Health Solutions, publicada em julho de 2023, mostrou como a lucratividade dos planos nos EUA atingiu um de seus pontos mais baixos desde 2012. A receita no país em 2022 foi de US$ 1,2 trilhão, acima dos US$ 0,5 trilhão de 2012. No entanto, o retorno dos procedimentos médicos pós-pandemia e o colossal aumento dos custos clínicos fizeram a sinistralidade nos últimos dois anos atingir mais de 87% no país. Como resultado, as margens de subscrição caíram para o mais baixo nível em sete anos. Em média, as margens de subscrição de 2,8% nos últimos três anos (2020–2022) foram inferiores aos 3,2% do triênio anterior (2017–2019). Talvez Friedman perguntasse hoje às lideranças do setor: “O que há de errado com você?”,
O estudo da Deloitte mostra que, entre vários fatores, dois são fundamentais para ajudar as operadoras a obterem sucesso nos próximos anos: (1) apoiar-se na saúde digital já incorporada pelo usuário; e (2) utilizar intensamente ferramentas de compartilhamento de dados. Nessa direção, o paper “What does the future hold for the health insurance industry? 19 executives explain”, publicado em agosto de 2023 pelo journal Becker's Healthcare, ouviu várias lideranças do setor norte-americano de Seguro de Saúde opinando sobre ‘como serão os próximos 10 anos’. Eles explicitaram como o setor depende eminentemente da fusão do bioma saúde com a biosfera digital. Separamos abaixo 14 dessas visões, em que os líderes convergem sobre a importância da infosfera nos próximos anos para o setor (das 19 declarações contidas no paper, somente 5 não envolvem diretamente fontes pagadoras). Assim, segue um resumo das visões (o grifo é deste autor):
- Dom Antonucci, presidente e CEO do Providence Health Plan (1,5 milhão de beneficiários): “Na próxima década, o número de acordos de cuidados baseados em valor aumentará drasticamente, pois os pagadores continuarão a procurar maneiras de melhorar os resultados dos pacientes, fornecendo serviços acessíveis à cobertura. À medida que aumenta a demanda por melhores experiências do paciente, veremos uma mudança na direção de modelos de atendimento mais colaborativos e que possam garantir uma integração mais estreita entre o atendimento e o compartilhamento de dados”.
- John Bulger, Diretor Médico do Geisinger Health Plan (525 mil beneficiários): “Espero ver mais consolidação em todos os setores da indústria pagadora nos próximos anos. Haverá mais foco no consumidor e na digitalização da experiência dele. O objetivo de tudo isso deve ser criar valor para o beneficiário que, por sua vez, criará valor para outras partes interessadas”
- Ceci Connolly, presidente e CEO da Alliance of Community Health Plans (20 milhões de beneficiários): “Há muitas mudanças emocionantes no horizonte que afetarão o setor de pagadores e a maneira como os consumidores recebem atendimento. A inteligência artificial tem o potencial de agilizar a prestação de cuidados, reduzir custos e manter os pacientes saudáveis por mais tempo. Essas novas fronteiras certamente virão com questões complexas e até mesmo controversas. Com 10.000 americanos adicionais se qualificando para o Medicare todos os dias, esperamos que muitas de nossas recomendações de políticas inteligentes sejam promulgadas até 2033, abrindo caminho para cuidados acessíveis e de alta qualidade para as gerações de idosos que virão”.
- Mac Davis, vice-presidente, produtos digitais e dados da Belong Health: “Os próximos 10 anos parecem brilhantes. Seja lançando novos produtos como D-SNPs, usando ML/AI de forma inteligente para obter eficiências operacionais, que, anteriormente, só estavam disponíveis para aqueles que tinham escala”.
- Tenbit Emiru, vice-presidente executivo e diretor médico da UCare (400 mil beneficiários): “Recursos de IA, automação robótica de processos e ferramentas de aprendizado de máquina mudarão o setor nos próximos 10 anos. Avanços significativos em tecnologia para diagnosticar, interpretar testes, fornecer tratamento e outros serviços de apoio aos beneficiários foram desenvolvidos apenas nos últimos anos. Prevê-se mais em áreas de envolvimento interativo, uso de realidade aumentada em tratamento e terapia, IA em programas de treinamento de saúde, monitoramento domiciliar e outros serviços, como assistentes virtuais, para ajudar os beneficiários a receberem cuidados e viverem com saúde por mais tempo em suas casas e comunidades. Várias funções, como a mineração de dados clínicos, serão avanços significativos na saúde da população, podendo antecipar riscos e sinistros. Em 10 anos, todas essas ferramentas farão toda a diferença no setor.
- Natasha Khouri, vice-presidente de estratégia e soluções de saúde digital do UPMC Health Plan (4 milhões de beneficiários): “As principais tendências que terão mais impacto em nosso setor nos próximos 10 anos: requisitos progressivos em relação à interoperabilidade de dados; marcha acelerada em direção a contratos baseados em valor; e maior aplicação de IA na saúde. Todas essas são dinâmicas que terão um impacto descomunal em nosso setor, porque invertem os paradigmas subjacentes que definiram as relações entre as partes interessadas na área da saúde e, de várias maneiras, impediram o progresso”.
- Mateus McGinnis, vice-presidente da Evernorth (30 milhões de beneficiários), subsidiária da UnitedHealth Group, a maior empresa de saúde dos Estados Unidos: “A pandemia acelerou a inovação em todo o setor de saúde, principalmente em como e onde as pessoas podem obter atendimento; mas a realidade é que o acesso ao atendimento continua sendo um desafio para muitas pessoas em nosso país. Para resolver esse problema, os pagadores precisarão adotar opções de atendimento digital e virtual para seus clientes, onde quer que estejam, dando-lhes acesso a serviços convenientes e acessíveis, incluindo acompanhamento comportamental, farmacêutico, dentre outros”.
- J. Nwando Olayiwola, Chief Health Equity Officer e vice-presidente sênior da Humana (40 milhões de beneficiários): “Acredito que a Humana e todos os pagadores continuarão a influenciar e possibilitar um ecossistema de saúde mais equitativo nos próximos 10 anos e além. Para continuar a garantir que todas as pessoas tenham a oportunidade de atingir todo o seu potencial de saúde, os pagadores devem garantir que a equidade na saúde permaneça no centro dos cuidados, guiada pela coleta e desagregação apropriadas de dados médicos, centrando as vozes e experiências nos mais marginalizados e melhorando o acesso ao mais alto nível de qualidade para todos, revelando o potencial do atendimento baseado em valor”.
- Bruce Rogen, Diretor Médico do Cleveland Clinic Employee Health Plan (24 mil beneficiários): “Melhor compartilhamento e captação de dados, levando a uma maior confiança entre provedores e pagadores, o que leva a mais integração em todo o setor, incluindo autorizações e aprovações quase em tempo real (horas em vez de dias) devido à comunicação bidirecional entre EMRs e sistemas pagadores”.
- Anil Singh, vice-presidente sênior e diretor médico executivo da Highmark Health (6,8 milhões de beneficiários): “Os pagadores precisam começar a pensar em como colocar a "saúde" de volta nos planos de saúde. Ao criar jornadas personalizadas que atendem às necessidades de cada beneficiário, será mais fácil se envolver e tomar as medidas certas para gerenciar o atendimento - o que acaba melhorando os resultados na saúde geral da população”.
- Ashish Shah, CEO da Dina (1 milhão de beneficiários): “Veremos três grandes tendências: (1) pagadores priorizarão a residência como local principal de atendimento e investirão em ferramentas de digital health para desenvolver completamente essa capacidade, além dos atendimentos domiciliares tradicionais; (2) pagadores investirão em serviços de concierge pessoal; (3) pagadores disponibilizarão um conjunto de benefícios médicos e não-médicos, promovendo realmente a utilização saudável deles, que, por sua vez, reduzem custos e melhoram a qualidade/experiência”.
- Michael Todaro, Diretor de operações da Magnolia Health (600 mil beneficiários): “Estamos de olho na tecnologia emergente de IA e como ela pode ser usada para reduzir tarefas repetitivas, bem como aproveitar a capacidade de análise preditiva para orientar melhor o gerenciamento dos times de atendimento. A assistência médica está apenas arranhando a superfície dos mecanismos capazes de colocar a IA para trabalhar para nós, para melhorar o atendimento ao cliente, reduzir fraudes, desperdícios/abusos e reduzir os custos gerais”.
- Howard Weiss, vice-presidente de Políticas Públicas da EmblemHealth (3 milhões de beneficiários): “Os reguladores estão exigindo que os pagadores sejam mais transparentes em seus preços e procedimentos administrativos. Mais padronização e transparência de preços tornará difícil para os pagadores se diferenciarem em custo. Em vez disso, eles serão julgados por sua capacidade de trabalhar com os provedores de modo a reduzir as disparidades na saúde, gerenciando com eficácia as condições crônicas por meio de acordos baseados em valor”.
- Cameual Wright, vice-presidente e diretor médico de mercado da CareSource Indiana (1,5 milhões de beneficiários): “Prevejo refinamentos significativos no setor de pagadores nos próximos 10 anos, à medida que nossas organizações evoluam em avanços tecnológicos. Espero um maior foco na qualidade e nos resultados, com maior prevalência de acordos baseados em valor com os provedores, em vez de reembolso de taxa por serviço. Também acredito que haverá inovação em automação que simplificará as funções de gerenciamento, capazes de reduzir os tempos de resposta e melhorar as experiências dos beneficiários e fornecedores. Como em outros setores, espero ver o crescimento da inteligência artificial, que tem o potencial de revolucionar a gestão, incluindo as determinações de necessidades médicas e empreendimentos de gerenciamento de cuidados”.
Numa verificação básica, percebe-se que a maioria das lideranças está consciente de que (1) a interoperabilidade e o compartilhamento de dados são nevrálgicos para o futuro do setor; (2) que os vários níveis de inteligência artificial acionarão cada vez mais os mecanismos clínicos e organizacionais; e (3) que a transformação digital setorial deverá acompanhar a digitalização pessoal dos beneficiários.
Os custos de saúde continuarão sua escalada crescente nas principais regiões do mundo. Nos próximos três anos, mais de 78% das seguradoras de saúde esperam um crescimento maior do custeio, ou significativamente maior. Durante esse período, 84% das seguradoras na Europa, 73% na Ásia-Pacífico, 69% na América Latina e 60% no Oriente Médio e África preveem um aumento maior ou significativamente maior nas despesas médicas (fonte: consultoria Willis Towers Watson). Se não bastasse isso, a OMS estima que mais de 3 bilhões de indivíduos não têm acesso a serviços essenciais de saúde, recomendando intervenções de autocuidado para todos os países como um caminho crítico para alcançar a cobertura universal de saúde. Ou seja, se metade dos excluídos alcançar algum nível de acesso à saúde (pública ou privada), a demanda pressionará ainda mais a oferta de serviços, provocando maior inflação e contínua elevação de preços.
Curiosamente, o país que detém o maior gasto com Saúde do planeta estuda alternativas radicais. Amy Finkelstein, professora do MIT (Massachusetts Institute of Technology) é uma das maiores especialistas em Seguro Saúde do mundo. Seu último livro, "We've Got You Covered: Rebooting American Health Care", lançado em 2023 e publicado em conjunto com Liran Einav (Stanford University), pede uma revisão total do sistema de seguro saúde dos EUA. Finkelstein é uma pesquisadora dedicada aos problemas desse setor há mais de duas décadas, com outras obras nessa mesma direção (“Moral Hazard in Health Insurance”; e “Risky Business: Why Insurance Markets Fail and What to Do About It”), tendo recebido a “Medalha John Bates Clark” por seu trabalho.
O livro é um massacre ao neoliberalismo norte-americano; uma metanálise sobre o setor que não deixa margem a dúvida sobre o que a autora pretende. Para ela, nenhuma política atendeu totalmente às necessidades da população norte-americana. Cerca de 30 milhões de cidadãos carecem de seguro saúde no país, sendo que, mesmo para os segurados, os custos periodicamente excedem os benefícios do plano. Resultado: os americanos têm US$ 140 bilhões em dívidas médicas não pagas, mais do que todas as outras dívidas pessoais combinadas, e três quintos delas são contraídas por pessoas com plano de saúde (cerca de 150 milhões de americanos dependem de seguro privado fornecido pelo empregador, com risco de perdê-lo se perderem ou mudarem de emprego).
Diante desse quadro, Finkelstein vai direto ao ponto: “Por que não incluir toda a população em um acesso público de saúde? Quando você pensa em cobrir todas as lacunas, isso chama-se cobertura básica universal", explica ela. “Quando as pessoas estão em situações médicas terríveis e não têm recursos, nós inevitavelmente, como sociedade, precisamos ajudá-las. Os problemas dos segurados e não-segurados representam falhas em cumprir nossos compromissos, não a falta desses compromissos”, avalia Finkelstein. Poderiam os EUA fornecer um sistema de cuidados de saúde gratuito, básico e com inscrição automática? A resposta surpreendente do livro é: “Sim, com certeza”. Cerca de 18% do PIB do país é gasto em cuidados de saúde. Metade disso vai para cuidados públicos (Medicare e Medicaid) e a outra metade para cuidados privados. Na verdade, 9% do PIB é o montante que os países europeus gastam nos seus sistemas públicos de saúde. "Já estamos pagando pela cobertura universal nos Estados Unidos, embora não a estejamos obtendo", diz Finkelstein.
Todas as 14 lideranças ouvidas acima já têm esse mindset no radar. Já existem vários projetos no Congresso sugerindo inúmeros “sistemas mistos de saúde”, mais parecidos com o nosso SUS do que com a salada privatista do modelo americano. Nem todas as lideranças são contrárias ao um sistema universal de cobertura desde que este considere camadas de seguro privado, cobrindo, por exemplo, quartos hospitalares e outros elementos eletivos da assistência médica (o chamado ‘medical-upgrade’). Um homem americano de 40 anos pode esperar viver 15 anos menos se estiver entre os 1% mais pobres do país (ao contrário, se ele estiver entre os 1% mais ricos). “A chave é fornecer cobertura básica essencial", explica Finkelstein.
Nas últimas décadas, a saúde mundial obviamente melhorou. Menos crianças estão morrendo ao nascer ou na tenra idade, indivíduos vivendo com HIV podem agora desfrutar de boa saúde, homens e mulheres vivem com mais conforto e por mais tempo. No entanto, para bilhões de pessoas, a promessa de uma vida saudável, longa e produtiva ainda parece inatingível; uma quimera que nem as instâncias públicas ou privadas de saúde conseguem resolver. Por qualquer caminho que os próximos dez anos nos levem, a tecnologia digital será a única forma de pavimentar e amplificar o bioma saúde, seja nos EUA, Brasil ou em qualquer outra nação (análise da McKinsey de 2023, concluiu que as três maiores economias da África - Nigéria, Quênia e África do Sul - poderiam poupar 15% dos custos em saúde somente implementando cinco soluções digitais).
Metamorfose Digital Clínico-assistencial; Cobertura Universal de Saúde; Compartilhamento de Dados Médicos; Mutualismo 2.0; IAs Generativas para Diagnóstico e Controle Terapêutico; Segurança e Privacidade de Dados Clínicos e inúmeros outros imperativos estão sacudindo a Cadeia Global de Saúde. Em seu livro "We've Got You Covered", Finkelstein sugere utilizarmos o inesquecível dogma do próprio economista Milton Friedman: “É preciso desenvolver ideias e mantê-las no debate público até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)