Para Douglas Mariotoni, engenheiro de automação atualmente à frente da digitalização da Nordika do Brasil, a transformação digital é uma resposta para alguns dos desafios mais complexos vividos pela indústria farmacêutica hoje. “Existe uma tendência de busca por medicinas preventivas e terapias personalizadas, que implicam na necessidade da produção de lotes menores, otimização de recursos e processos de produção e qualidade mais eficientes”, lista.
Líder do Comitê Pharma 4.0 da ISPE Brasil, o especialista também destaca outro desafio: o time-to-market, ou seja, o tempo entre o desenvolvimento e aprovação de um produto e sua comercialização. “Neste sentido a transformação digital é uma das respostas a estes desafios e a falta dela pode significar até mesmo um risco para os negócios”, acredita.
Nessa entrevista, confira algumas das percepções de Mariotoni sobre o tema, que pode gerar insights importantes para outros players da cadeia de saúde no Brasil.
Saúde Business - A digitalização é uma tendência para a saúde, e foi ainda mais acelerada durante os anos mais intensos da pandemia. Para a indústria, essa transformação digital já vinha sendo aplicada antes. Isso ajudou a lidar com o combate à COVID-19? O setor já estava maduro para lidar com essas novas demandas de saúde digital?
Douglas Mariotoni - De maneira geral a Indústria Farmacêutica tem enfrentado diversos desafios de diversas ordens. Em termos de inovação e produto, existe uma tendência a medicinas preventivas e terapias personalizadas que implicam na necessidade da produção de lotes menores, otimização de recursos e processos de produção e qualidade mais eficientes. Outro desafio de alto impacto para a Indústria Farmacêutica e Biotecnologia é o time-to-market, ou seja, o tempo para ter o medicamento desenvolvido, aprovado pelos órgãos regulatórios e pronto para comercialização. Neste sentido a transformação digital é uma das respostas a estes desafios e a falta dela pode significar até mesmo um risco para os negócios. Estas necessidades ficaram muito evidentes na pandemia e entendo que algumas empresas já tinham sim este processo de transformação digital mais acelerado o que contribuiu para um menor time-to-market em relação ao desenvolvimento e comercialização das vacinas para a COVID-19.
SB - Como o contexto de indústria 4.0 é aplicado na indústria farmacêutica? Quais são as características que diferenciam essa indústria das demais?
DM - A principal diferença é que a Indústria Farmacêutica e de Biotecnologia devem atender a rigorosos requisitos regulatórios e de boas práticas de fabricação, visando assegurar a qualidade do medicamento e a segurança do paciente. Esta característica exige que os conceitos da Industria 4.0 sejam, de certa forma, adaptados para este setor para atender a estes requisitos, o que já está ocorrendo. Adicionalmente, também existe a necessidade de validar os processos e sistemas, manter e comprovar este estado validado com um procedimento de controle de mudanças e registros, o que torna a implantação de projetos de tecnologias que tenham impacto nos processos validados mais trabalhoso em relação a demais indústrias sob este ponto de vista. E exatamente devido a esta especificidade entendo que seguir no caminho da Industria 4.0 é uma grande oportunidade para a Industria Farmacêutica e de Biotecnologia se manter competitiva e viabilizar novos modelos de negócios para as próximas gerações de medicamentos.
SB - Quais tecnologias de automação e digitalização da indústria 4.0 podem ser aplicadas à indústria farmacêutica e quais implicações estamos enfrentando devido aos desafios regulatórios cada vez mais complexos no setor?
DM - Aplicar os conceitos da Indústria 4.0 significa inserir tecnologias na geração de valor da organização obtendo como resultado processos mais ágeis e responsivos. Neste sentido, todas as tecnologias associadas a Indústria4.0 podem ser aplicadas à Indústria Farmacêutica (Internet das Coisas, Computação de Nuvem, Sistemas Integrados, Manufatura Aditiva, Simulações, Robôs Autônomos, Big Data, Realidade Aumentada, Segurança da Informação, entre outros) desde que estejam preparadas para atender aos requisitos regulatórios de validação de sistemas computadorizados e de boas práticas de fabricação, quando necessário.
A digitalização pode ajudar muito a atender com eficiência os desafios regulatórios cada vez mais complexos. Um exemplo disto são os conceitos e tecnologias que suportam a implantação de processos com integridade de dados assegurada em fase de projeto e sistemas de qualidade mais eficientes em relação ao modelo de controle de qualidade clássico baseado em teste de produto para controles baseado em processo, liberação paramétrica e em tempo real. Quanto maior a maturidade digital da empresa maior a capacidade de implantar uma estratégia mais eficiente de controle de qualidade e atendimento aos requisitos regulatórios.
SB - Qual o nível de maturidade digital da indústria farmacêutica no Brasil? Quais ainda são as dificuldades encontradas e quais são os próximos passos para o setor?
DM - A maturidade avalia como a empresa atua na sua cadeia de valor em relação ao modelo de gestão, processos e técnicas utilizadas. A prontidão analisa resistências que podem ser apresentadas pela organização diante mudanças tecnológicas. Para obtenção do nível de maturidade outras dimensões além da manufatura devem ser analisadas, por exemplo, é importante entender o comportamento das Pessoas e a Cultura da empresa, pois no conceito da Indústria 4,0 os recursos humanos já não trabalham mais em um único silo departamental, possuem características de flexibilidade cognitiva, pensamento crítico e criatividade. Existem diversos modelos para medir o nível de maturidade, um dos mais conhecidos é da Acatech (Academia Alemã de Ciências e Engenharia) que possui 6 níveis sendo eles Informatização, Conectividade, Visibilidade, Transparência, Capacidade Preditiva, e Auto Otimização.
Quanto à maturidade digital da indústria farmacêutica no Brasil, a resposta a este item é uma percepção muito individual baseada na minha vivência neste segmento da Indústria, mas entendo que a indústria farmacêutica no Brasil em sua grande maioria está entre o nível de conectividade, ou seja, possuem capacidade de acesso aos dados gerados pelos sistemas informatizados e o nível de visibilidade no qual as organizações podem ver em tempo real o que está acontecendo. Já vi iniciativas em níveis mais avançados até no nível de Capacidade Preditiva, mas aqui estou fazendo uma avaliação mais ampla e geral do segmento.
Vejo que o segmento no Brasil está dando um passo importante pois atualmente tenho notado muitas iniciativas na Industria Farmacêutica brasileira para implantação de Sistemas de Execução da Manufatura (MES) e Sistemas de Gerenciamento de Informações de Laboratório (LIMS) que suportam a implantação do conceito de Paperless Manufacturing gerando inúmeros benefícios como ganhos de eficiência, integridade de dados, visibilidade e transparência dos processos, redução de custos com recall caros e agilidade na liberação de lote. Na minha visão estes sistemas são necessários como se fossem uma base para evolução para os próximos níveis de maturidade digital.
Existe um importante trabalho sendo feito pela ISPE (International Society for Pharmaceutical Engineering) em escala global que é um grupo de estudo, um comitê, chamado Pharma4.0, do qual sou o líder aqui no Brasil. Um dos nossos objetivos é unir a indústria, os fornecedores de tecnologias e órgãos regulatórios para entender melhor as dificuldades na implantação dos conceitos e tecnologias da Indústria4.0 na Indústria Farmacêutica e de Biotecnologia e em conjunto encontrar soluções técnicas que viabilizem a aceleração digital e a evolução da maturidade digital das mesmas aqui no Brasil.
SB - O que os outros agentes da saúde – como os hospitais e laboratórios – podem aprender com a indústria farmacêutica, quando falamos de digitalização e tecnologias 4.0?
DM - Eu acredito que ambos têm muito o que aprender com o outro. Os hospitais podem fornecer feedbacks valiosos para que a Industria farmacêutica possa aprimorar o medicamento e agregar valor com serviços customizados no produto para o paciente, e entendo que há um espaço muito grande para avançar neste ponto tanto os hospitais como a Indústria Farmacêutica. Outro ponto, já existem modelos que descrevem a evolução dos sistemas de qualidade da Indústria Farmacêutica com seus controles baseados no desempenho e no resultado do paciente, por exemplo, disponibilidade do medicamento, eficácia do medicamento, sem efeitos colaterais, conveniência na aplicação, suporte para a adesão do paciente, entre outros. Vejo que a integração de toda a cadeia desde o desenvolvimento do medicamento na indústria até o paciente final é requisito essencial para evoluir neste ponto.