O homem não é o sexo forte, mas o frágil! Homens evitam ao máximo os médicos. Têm vergonha de se expor e mentem descaradamente sobre suas insuficiências em saúde. Mentem para o médico, para família e para si mesmos. Não à toa vivem menos do que as mulheres, tendem a sofrer mais morbidades, ficam doentes mais jovens, desenvolvem mais patologias crônicas e cardíacas, mais problemas de fígado, alcoolismo, suicídio, sendo mais propensos que as mulheres a desenvolver hérnias inguinais, aneurismas aórticos, gota, cálculos renais, câncer de bexiga, enfisema e úlceras duodenais. Trecho do estudo (“Mars vs. Venus: The gender gap in health”) da Harvard Medical School e do CDC (EUA) completa: “pergunte a qualquer indivíduo e ele dirá que os homens são o sexo forte. Em média, homens são maiores e mais musculosos do que as mulheres. Podem correr mais rápido, levantar mais peso e arremessar mais longe, mas em termos médicos é outra história. Quando se trata de saúde, os homens são o sexo frágil”.
Inúmeros fatores biológicos e culturais explicam essa fragilidade, mas a formação familiar e educacional, desde a mais tenra idade, induz o sexo masculino a desqualificar sua saúde, persistindo no arquétipo macho-alfa. Homens ainda são criados para a manutenção de determinados padrões ditados pela sociedade e pela cultura. São desencorajados a buscar ajuda médica porque isso é percebido como uma demonstração de fraqueza. A tradicional pesquisa MENtion It, realizada nacionalmente nos EUA pela Cleveland Clinic, mostrou na edição de 2019 que 65% dos homens evitam ir ao médico o máximo possível, sendo que 37% disseram que usualmente ocultam informações dos médicos. Mais do que isso: (1) 77% dos casados preferem ir às compras com a companheira do que ir ao médico; (2) 41% deles ouviram quando criança que “homens não reclamam de problemas de saúde”; (3) 82% tentam se manter saudáveis, com apenas 50% se envolvendo em cuidados preventivos; e (4) 46% ficam constrangidos quando vão ao médico (36% não querem ouvir que precisam mudar seu estilo de vida, e 37% mesmo sabendo que há algo errado dizem “não estar prontos para enfrentar um diagnóstico”).
Na edição de 2022 da mesma MENtion It, o resultado mostrou como a vergonha e o medo se agravam quando as questões sexuais se alinham à fuga do apoio médico: (1) só 32% dos homens estão preocupados com sua saúde sexual à medida que envelhecem, o que é quase a mesma porcentagem de homens preocupados com câncer (38%); (2) 58% dos homens pensa incorretamente que a baixa testosterona é a causa mais comum de disfunção erétil (resultados mostraram também que 71% dos homens que tiveram problemas relacionados à saúde sexual, incluindo disfunção erétil, foram diagnosticados com doenças cardiovasculares ou diabetes); (3) 50% deles dizem que não fazem exames de saúde regulares, sendo que 64% não conhecem seu histórico familiar completo, principalmente quando se trata de incidências cancerígenas. Assim, apesar de terem preocupações com a “saúde dos outros” (família), a maioria dos homens são reativos quando se trata de sua própria saúde. Você conhece alguém assim?
Essas são algumas das razões pelas quais os homens morrem em média 5 anos mais jovens que as mulheres, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. O estudo “Raising the profile of men's health”, publicado pela The Lancet em 2019, também concluiu: “Fortes crenças, normas, atitudes e estereótipos de masculinidade são predominantes e prejudiciais à saúde dos homens. Essas crenças criam barreiras sociais que impedem os homens de procurar serviços médicos e os expõem a maiores riscos”. O resquício socioeconômico dessa ‘cadeia de constrangimento’ faz parte das curvas de custeio dos sistemas de saúde, que “pagam” mais pela demora do homem em buscar aconselhamento médico. Quando buscam, em geral, já é tarde, já é caro e o tratamento já não é preventivo, fazendo com que o custeio seja proporcional a procrastinação.
Independente da necessidade de mudanças culturais e comportamentais de base (“alfabetização em saúde”, por exemplo), novos modelos de atendimento surgem para reduzir o gap do “constrangimento machista de buscar ajuda médica”. Nos últimos anos, cresceram vários novos formatos de atenção masculina, em geral centrada na saúde sexual. Um dos novos formatos é o VIMPRO (Vertically Integrated Micro-Providers), amplamente acelerado com o crescimento da Covid-19 e da Telemedicina. Trata-se de um serviço clínico-assistencial alternativo, baseado em digital health e centrado no público masculino (mas não só nele). Trata-se de um ‘provedor de assistência médica remota’ que oferece serviços de ‘ponta a ponta’ a “homens que sofrem do ‘tabu’ quanto aos cuidados com a saúde” (disfunção erétil, obesidade, queda de cabelo, depressão, agressividade, etc.). Normalmente as VIMPROs oferecem diagnósticos, consultas, planos de tratamento, administração de medicamentos, etc. com dois elementos diferenciais: integração e continuidade. São plataformas que proporcionam uma matriz de serviços médicos masculinos de forma discreta, sem barreiras discriminatórias e com integração de cuidados.
Modelos inovadores de serviços médicos seguem trilhas ‘despercebidas’, escondidas ou camufladas em comportamentos reservados e pouco expostos. Geralmente emergem de atitudes e maneiras de pensar que hoje encontram mais amparo na inovação tecnológica. Healthtechs e Fundos de Investimento são “caçadores” de oportunidades encravadas em estigmas, desvios sociais mal resolvidos, novos hábitos e públicos carentes de perspectivas inusuais de atenção médica. Um recém-nascido em 2023, por exemplo, precisará de serviços de pediatria que entendam e atendam às suas demandas dentro da “cosmologia digital”, que não existia há uma década. O filósofo francês Lucy Ferry (71 anos), autor de mais de 70 livros e uma das estrelas do pensamento humanista deste século, explica: “A cada ano um novo medo se adiciona a todos os outros, como o medo de carne vermelha, dos novos patógenos, das redes sociais, do sexo, tabaco, aquecimento global, etc. Temos três tipos básicos de medo: (1) a timidez, que nos sufoca, principalmente com a pressão da sociedade; (2) as fobias, como o medo do escuro, da solidão, de insetos, etc.; e (3) o medo da morte; e aqui não me refiro somente à morte biológica, mas a tudo o que é irreversível. O mais surpreendente é que essa ‘proliferação de medos’ é acompanhada por um movimento ainda mais profundo: a desculpabilização do medo. É como se estivéssemos mais preparados para aceitá-los e a sociedade mais habilitada a nos atender. Nós, e principalmente nossos filhos, vamos viver num mundo que não terá mais nada a ver com o nosso”.
Um exemplo é o atendimento clínico-assistencial à comunidade LGBTQIA+. Estudo publicado em 2018 pelo The Harvard Gazette, descobriu que “um em cada cinco adultos desse grupo evitou procurar atendimento médico por medo de discriminação”. A pesquisa mostra o quão longe ainda estamos de cuidados sanitários justos e que espelhem as realidades deste século. Por outro lado, essa incompletude assistencial (seja pelo constrangimento por parte do paciente, seja por parte do médico que, eventualmente, estratifica determinados perfis sociais) projeta novas abordagens mercadológicas. Os VIMPROs surgiram nessa direção: fornecer soluções de atendimento hiperespecializado, com integração tecnológica inteligente e monitoramento desde o diagnóstico até a intervenção hospitalar (quando necessária). A telemedicina suporta esse continuum entre pacientes e médicos, aliviando medos e constrangimentos. Por outro lado, o modelo VIMPRO produz receitas estáveis, repetíveis e escaláveis devido a supervisão personalizada, que facilita a retenção e a fidelização do paciente.
A plataforma Numan, por exemplo, oferece aos “envergonhados” desde uma consulta online (gratuita) até a entrega de medicamentos (24 x 7), eliminando os embaraços comportamentais da procura e contato médico presencial. Quando este acontece, já existe uma base de conhecimento sólida sobre o paciente e suas características, facilitando a atuação do médico. A Numan atingi o mercado dos “homens que querem assumir o controle de sua saúde”, seja lá o que isso signifique. Em setembro de 2022, a empresa arrecadou US$ 40 milhões em VC para entrada no mercado do Reino Unido e Europa. Já a Roman está centrada no vetor sexual masculino (disfunção erétil, ejaculação precoce, herpes, tratamentos capilares perda de peso, etc.), assim como a Hims. A Vault, por outro lado, vai mais longe e oferece suporte familiar. Todas healthtechs-vimpro operam com apps algoritmizados, padrões de discrição e ações baseadas em movimentos holísticos e personalizados. O fundador e CEO da Vault, Jason Feldman, apruma: “Nossa missão é tornar mais fácil e acessível aos homens obterem cuidados especializados para se sentirem melhor e terem uma vida melhor. Eliminamos o atrito prescindível do consultório médico, da sala de espera e dos eventuais constrangimentos de ter que explicar sintomas a uma cadeia de médicos que não é especialmente treinada na especialidade clínico-masculina".
No Brasil, existem várias clínicas masculinas cumprindo parte do escopo dos VIMPROs. Ocorre que nem todas possuem a magnitude tecnológica que o modelo exige: cobertura 24 x 7, continuidade de tratamentos multidisciplinares, alto grau de personalização e, acima de tudo, sigilo (em geral, o “Vertically” significa também médicos e equipes de atendimento se reportarem somente ao próprio paciente, sendo que nos EUA já existem VIMPROs com “non-disclosure agreement" entre as partes). Em geral, as clínicas masculinas atuam em faixas específicas de contexto clínico e quando a condição do paciente extrapola esse espectro a clínica encaminha o paciente para o especialista devido (a partir daí o paciente retorna a ciranda de múltiplos profissionais de saúde, ficando novamente refém do constrangimento).
Mas os modelos de VIMPRO podem ir além. O NHS (serviço público de saúde britânico) está em crise (qual sistema público não está?). As vagas de pessoal são atualmente superiores a 130 mil, as listas de espera de cuidados eletivos devem ultrapassar 10 milhões até março de 2024, sendo mais de 20 mil o número de consultas ambulatoriais canceladas todos os dias. Segundo a diretora-executiva do NHS, Amanda Prichard: “a demanda por provedores nacionais de saúde está aumentando tão rapidamente que os pacientes nem sempre recebem o nível de atendimento que merecem”. Ela destaca um déficit projetado de £ 7 bilhões no orçamento do NHS, enfatizando: “temos que mudar o modelo de atendimento, saindo daquele que faz diagnóstico tardio e tratamento caro para aquele que faça diagnóstico mais rápido, melhor tratamento e melhor valor para o contribuinte". Amanda não falou nada que todos os gestores de saúde já não sabem, valendo para o SUS ou para a nossa Saúde Suplementar.
Mas, ao contrário de muitos países, o Reino Unido não se furta à inovação, sendo talvez a mais empreendedora nação no quesito public-digital-health. Nesse sentido, o modelo VIMPRO britânico ganhou ritmo nos últimos anos, mostrando-se uma forma bem-sucedida de atender às necessidades de “grupos de pacientes mal atendidos”, que chegam tarde ao sistema (ou não chegam) encarecendo os cuidados. Seria possível que esse modelo reduzisse a carga de “sinistros médicos” derivados do atendimento tardio, ou da falta de prevenção ou mesmo dos problemas comportamentais dos pacientes? É difícil saber. Mas um VIMPRO é, antes de tudo, um provedor de telessaúde interessado em fornecer atenção integrada e contínua a grupos específicos de pacientes. No Reino Unido, alguns VIMPROs já são caracterizados pela excelente experiência do usuário e pelo atendimento personalizado de médicos cada vez “especializados nas demandas de cada biotipo de paciente”. Um exemplo é o serviço Leva Clinic, líder no mercado inglês em “gerenciamento de dor crônica” por meio de “cannabis medicinal” (para pessoas que sentem dor há mais de 3 meses). A maioria dos usuários paga para utilizar a plataforma, onde acede a serviços de psicologia, enfermagem, aconselhamento fisioterápico, prescrição e entrega domiciliar de medicamentos. Trata-se de um serviço de “varredura clínica 360º”, capaz de apoiar os pacientes por meio de modelos de prevenção, predição e autoproteção acionados por IA. Para o NHS, os benefícios dos VIMPROs são múltiplos: (1) fornecem um ponto de acesso alternativo para o atendimento a pacientes que podem custear o serviço, que, de outra forma, precisariam ser atendidos por clínicos gerais (general practitioner) e encaminhados a especialistas abarrotados de consultas (sem tempo e animo para abordagens personalizadas); (2) fornecem educação e alfabetização em saúde para grupos particulares de pacientes que precisam gerenciar sua condição de maneira singularizada, reduzindo com isso a carga de morbidades que mais adiante recairá sobre o NHS; (3) os VIMPROs são integrados adequadamente ao sistema (NHS), sendo que todas as informações de cuidados são rastreadas em seu registro eletrônico.
Milhões de homens que sofrem com perda de libido, ganho de peso, fadiga, desempenho cognitivo reduzido, depressão, etc. procuram soluções rápidas, acessíveis e discretas. Essa a tendência de uma sociedade cada vez mais “home-office”, que, até por conveniência, passa também a buscar “home-difference-services”. A resistência masculina em buscar apoio médico tem na “vergonha” um de seus principais fatores. Mas é bom salientar que vergonha não é algo simples. Trata-se de um afeto especial, um tipo de “tristeza particular”, uma tristeza derivada do próprio comportamento. Como explicou Espinoza (1632-1677): “a vergonha é um atributo flagrado em si mesmo que reduz a potência de agir”. Obviamente que não é um atributo unicamente masculino, se estendendo a todos os gêneros, em qualquer idade ou perfil social. Se a vergonha, o constrangimento e o embaraço são tristezas (que podem se tornar distúrbios mentais graves) é provável que os pacientes precisem ser atendidos por profissionais que saibam lidar com esse afeto, que sejam treinados para esse perfil e que possam atuar na redução metódica do envergonhamento (que, em geral, é um sentimento passageiro). Nesse sentido, os VIMPROs permitem que pacientes marquem consultas residenciais, façam exames realizados por corpo de enfermagem especializado e tenham suas condições explicadas e monitoradas por Telehealth. Um velho jargão das escolas de medicina (quando mestres lembram aos alunos sobre o valor da prevenção diagnóstica) ressalta: “o constrangimento dura um momento, o arrependimento dura a vida inteira”. Uma característica do modelo VIMPRO é o seu “microprovimento vertical”, ou seja, atende de forma personalizada e promove ‘coach-médico’, um mentoria sempre pronta a “estar e pensar” junto com o paciente.
Talvez o modelo VIMPRO seja só mais um neologismo em busca de investimentos ou atenção midiática, mas os problemas do constrangimento masculino frente a saúde são evidentes. Por falta de informação, preconceito ou vergonha, muitos homens banalizam a sua saúde, como no caso dos exames para detecção cancerígena. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o câncer de próstata é o segundo mais comum entre homens no Brasil (quinta principal causa de morte oncológica masculina no mundo), ficando atrás apenas do câncer de pele. Obviamente, o ‘exame de toque retal’ é aquele que mais constrange machos-alfa, embora seja de extrema importância. Em 2021, a campanha 'Shameless Cycle' foi lançada no Reino Unido por um aplicativo de gerenciamento da saúde (myGP), objetivando ajudar a quebrar o ciclo de constrangimento entre os homens quando se trata de discutir sua saúde. O drive da campanha era ajudar 1,5 milhão de britânicos a evitar uma morte prematura. Pasmem: como resultado, a campanha gerou uma pesquisa identificando porque os ingleses demoram ou evitam procurar aconselhamento médico, sendo que as principais causas foram: (1) muito ocupado para ir ao médico (29%); (2) (não ria) preocupado em sobrecarregar o NHS (28%); (3) incapaz de marcar uma consulta no horário de trabalho (26%); (4) embaraço ou constrangimento (23%); e (5) (também não ria) preocupado em pegar germes (22%). Ou seja, considerando que os pesquisados, de boa-fé, disseram a verdade, quase ¼ dos britânicos do sexo masculino não busca ajuda médica simplesmente por vergonha. O que dirá no Brasil?
Não precisamos ter vergonha da ‘vergonha’. Ela é humana. Mas, deixar de procurar ajuda médica por constrangimento é acima de tudo uma questão ética. Quando um serviço público de saúde se obriga a gastar mais de seus parcos cofres para amparar camadas da sociedade masculina que simplesmente não se cuidam e retardam os tratamentos em função de seus afetos, não estamos diante de um dilema moral, mas ético. O modelo VIMPRO não elimina o constrangimento, somente o esconde. Luc Ferry enquadra o dilema: “Nossa natureza é naturalmente inclinada ao egoísmo. Mas se quero dar espaço aos outros, se quero limitar minha liberdade às condições de integração com a de outrem, então é preciso que eu faça um esforço, é preciso mesmo que eu me violente. Somente nessa condição uma nova ordem de coexistência ética e pacífica será possível ao ser humano. Arriscar a vida, seja qual for o motivo, é sempre algo dramático. Mas será tão mais dramático se for a vida do outro que eu decida arriscar”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)