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O dia em que um robô assumiu o Ministério da Saúde

Crédito: istock robo triste.jpg

Automação em Saúde: de volta para o futuro

Primeiro de janeiro de 2039 foi um dia histórico para o Brasil: pela primeira vez um robô assumia o Ministério da Saúde. O “RMS@39” era uma ‘humanoid-sentience-machine’ (geração 1.5, desenvolvido em computação quântica, com capacidade de processamento de 1020 qubits, plataforma 6G e nível de inteligência artificial hype-four). Escolhido pelo novo governo, subiu a rampa com outros ministros sendo vaiado por alguns funcionários do Ministério e ‘cancelado’ por meia dúzia de Associações Médicas.

De pouca fala, na posse, RMS@39 (carinhosamente chamado de “quantito” pelas crianças) fez cumprimentos breves, acenou comovido para manifestantes do movimento “sem-robô” e logo se dirigiu ao ministério. Em 30 dias fez conexão com todos os Registros Eletrônicos do país informando a população de seus projetos.

No quadragésimo dia, porém, percebeu a gravidade dos problemas: 1/4 dos 26.300 hospitais do país estavam parados por falta de metaverso; programadores de aplicativos entravam no 32º. dia de greve reivindicando medidas de combate a ciática; a Covid-38 mostrava sinais de retorno; todos os robôs residenciais ameaçavam estrangular seus donos se não tivessem direito a férias de 30 dias; e a comunidade médica ameaçava o caos: deixar de prescrever ansiolíticos por 30 dias caso as ‘consultas presenciais’ não fossem totalmente abolidas (“telemedicina ilimitada!”, era o jargão de algumas associações médicas).

Fora isso, havia outros problemas: os recursos do Ministério cobriam no máximo 90 dias de gastos do SUS; a enfermagem nacional reivindicava a volta do ‘salário-paciência’ (instituído em 2033 quando o ‘leito-falante’ passou a ser obrigatório, sendo revogado em 2037). Não menos importante era o MS resolver os inúmeros casos de ‘desaprendizado de máquina’ ocorridos na fronteira do Paraguai, sem falar na reivindicação dos robôs-cirúrgicos de só trabalharem em home-office. Uma preocupação adicional era a nova legislação “lovótica”, que permitia o relacionamento afetivo entre humanos e robôs, criando vínculos conjugais e familiares estáveis. Devido a problemas de desidratação, o MS queria regular os robôs, limitando a 4 o número de relações sexuais diárias. Humanos entraram no STF condenando as limitações.

Era pressão demais. Quantito estava amargurado, tinha crises de identidade (achava que “um dia poderia ser substituído por um humano”), desconfiava do pessoal de sua manutenção (temia ser transformado em ‘snack-totem’ para estádios de futebol) e, acima de tudo, achava injusto sua data de validade ser definida pelo homem e não por Deus. Assim, alegando problemas familiares, no terceiro mês RMS@39 pediu demissão. Foi desligado, desmontado e está em visitação pública no Museu da Vantagem Médica, em Brasília.

Evidências e fatos históricos que nos trouxeram até a saída de Quantito:

  • O que acelerou a automação no Brasil foi a expansão das plataformas de RPA (Robotic Process Automation), que só cresceram na Saúde a partir de 2018, assumindo um papel relevante na então chamada “Transformação Digital”. RPA é “um ser humano virtual escalável, que pode ser instruído rapidamente para realizar procedimentos operacionais em velocidade de máquina”. Em linguagem minimalista, trata-se de um “software capaz de executar automaticamente vários processos de negócios, anteriormente só realizados por gente de ossos e neurônios”. As vantagens das RPAs (chamadas à época de “bots”) sempre foram claras: (1) redução de custos, (2) maior conformidade operacional, (3) qualidade, estabilidade e previsibilidade de resultados, (4) aumento e velocidade na automação processual; (5) maior produtividade, e (6) ganhos de escala.
  • Por volta de 2022, os ‘software-robots’ passaram a ser componentizados com Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR); Inteligência Artificial (machine learning); Processamento de Linguagem Natural (NLP) e Reconhecimento de Voz. Com essa carga tecnológica, o poder da RPA superou as limitações humanas para tratar processos repetitivos. Automação Robótica de Processos (RPA) utiliza programas de computador (às vezes em conjunto com máquinas robóticas humanoides) maximizando fluxos e regras de trabalho, inserindo, no caso da Saúde, uma “camada de músculos operacionais inteligentes” capaz de triplicar a entrega de serviços (nos EUA, por volta de 2018, a enfermagem gastava cerca de 25% de seu tempo no trabalho de funções administrativas). De acordo com a Pesquisa Global de RPA da Deloitte, publicada em 2018, a RPA era capaz de melhorar a produtividade da força de trabalho em 86%; a qualidade e a precisão em 90%; e a conformidade em 92%. No primeiro quarter deste século era comum confundir RPA com DPA (Digital Process Automation). A primeira tinha como foco fazer com que software-bots realizassem trabalhos rotineiros, monótonos e triviais, liberando os humanos para tarefas que exigiam inteligência emocional, raciocínio, julgamento e maior interação com os pacientes. Já a DPA se concentrava em automatizar fluxos de processos (não envolvendo tarefas humanas) de forma a melhorar a experiência do paciente. Ao contrário dos RPA-bots, as soluções DPA não eram projetadas para substituir pessoas, mas simplificar e fornecer automação dentro da cadeia de processos. A integração e gestão dessas duas formas de automação era chamada de BPM (Business Process Management), também conhecida como Gestão Organizacional de Processos. Era a BPM que determinava para cada projeto quanto “cabia” de RPA ou DPA, e como as duas automações se interoperavam.
  • A partir de 2020 ficou claro que automatizar processos em Saúde não era uma escolha, ou um ‘plus’, ou mesmo uma decisão circunstancial, mas a única forma de reduzir custeio sem reduzir o acesso e a qualidade. Mais do que tudo, a Automação de Processos Digitais em Saúde surgiu da necessidade de transformar tarefas anacrônicas, manuais e recorrentes (“reiterativas”) em fluxos mecanizados (“robotizados”) que liberassem profissionais e pacientes dos famosos “tempos mortos”, que só serviam à burocracia e a trâmites inócuos. Da mesma forma, é preciso lembrar que a RPA entrou na indústria de serviço de saúde coberta de dúvidas, incertezas e desconfianças, um pouco como a ‘computação em nuvem’, que havia invadido as TICs uma década antes. Mas em 2023, não havia mais dúvida de que a automação de processos em saúde seria irreversível, sendo que os vinte anos seguintes mostraram que as RPAs seriam ‘comoditizadas’, tornando a automação uma ferramenta central para produtividade das cadeias de saúde.
  • No final de 2020, no centro conturbado da Covid-19 e antes das evidências da RPA, os serviços de atendimento eram caóticos. No primeiro quarto do século XXI, por exemplo, um médico chegava ao pé do leito e comunicava ao paciente a alta médica. Júbilo! Ele e a família arrumavam a mala, agradeciam a enfermagem e em alguns minutos estavam prontos para voltar a casa. Mas, cinco horas depois, a equipe do hospital aconselhava-o a ter paciência. Como um prisioneiro, ele percebia que mesmo internado num dos melhores hospitais da região, era refém de uma cadeia de ‘indeliberação-hospitalar’. Em muito hospitais, o processo de liberação do paciente podia demorar mais de 12 horas. Talvez hoje pareça absurdo, mas em 2022 essa era a realidade em 95% da cadeia hospitalar. Na maioria das vezes a alta hospitalar lutava contra a alta médica. Eram sistemas não interoperáveis, processos não automatizados, compliances intermináveis, normas e regulações internas baseadas em papel e sempre dependentes de dúzias de ‘assinaturas exigenciais’. Naquele tempo, ocorria uma ‘batalha tosca’ entre o Prestador e o Operador no fechamento da conta hospitalar. Um lado reclamava de insumos não programados, serviços adicionais, remuneração médica fora dos limites, falta de anotações no prontuário e regras de reciprocidade não garantidas. O outro lutava por protocolos médicos, questionários de validação operacional e muita atividade centrada em tudo, menos no paciente. Um estudo publicado anos antes (2016), intitulado “Por que eles permanecem: causas de atraso na saída em pacientes de alta médica” e realizado pela professora Ana Maria Malik e o Dr. Fabio Yoshito Ajimura, concluía: “Os dados obtidos no estudo mostraram que grande parte dos pacientes permaneceu internada por motivos não relacionados ao quadro clínico, acarretando ocupação de leitos por pacientes de alta médica e impossibilitando a internação de pacientes que necessitam de um leito hospitalar... foram encontrados fatores relacionados a basicamente três grupos de causas: paciente/familiares, instituição e rede assistencial. A resposta aos atrasos da saída hospitalar é resultado de combinações de diferentes fatores em diferentes áreas”. Era um caos naquela época.
  • Em 2021, quando a pandemia estagnou (aquela que matou quase 700 mil pessoas no país), houve uma constatação mundial de que os Sistemas de Informações em Saúde estavam pouco ou nada automatizados. Milhões de tarefas eram realizadas com dados não-estruturados e sem integração com os entes da Saúde. Não só no Brasil como em vários outros países, verificou-se que gerar, automatizar e compartilhar dados traria incalculáveis benefícios em outros surtos epidêmicos. O estudo, “Responding to Healthcare Emergency Outbreak of COVID-19, Pandemic with Robotic Process Automation (RPA)”, publicado nos idos de 2022, mostrava que sem as RPAs a Finlândia, por exemplo, teria brutais dificuldades de reduzir os problemas pandêmicos. “A rápida implementação do RPA ofereceu implicações práticas para os tomadores de decisão em saúde, de modo a liberar um tempo valioso dos prestadores de serviço. Portanto, recomenda-se explorar mais os tipos e elementos trazidos pela tecnologia RPA em vários outros contextos, como emergências complexas e organização do sistema nacional de saúde pública”, explicava o estudo em suas conclusões.
  • Em 2030, a tecnologia RPA já estava totalmente integrada com plataformas de deep learning, promovendo com isso o conceito de “robotização pragmática(automação inteligente), que fundia definitivamente RPA com DPA. Em outras palavras: a partir de 2030 cresceu o conceito de “automação assistida” (ou ‘RPA assistido’), onde o bot atua como um assistente digital de todo e qualquer profissional com função executiva (do front-office até o back-office). Essa coparticipação (homem-máquina) alcançou a Saúde por volta de 2032, quando “todos os profissionais de saúde (principalmente corpo clínico) passaram a atuar em tempo integral com seu próprio “personal-rpa(robotic personal automation)”. Assim, os sistemas de automação pessoal triplicaram a assertividade das decisões, mitigando uma colossal carga de trabalho repetitivo do setor. No final de 2050, até os pacientes passaram a ter sua própria automação robótica pessoal, auxiliando na gestão do autocuidado, no controle das patologias crônicas e na aferição de indicadores de saúde.
  • Um dos fatores mais importantes para adoção da Automação em Saúde ao longo dos últimos 40 anos foi a sua subordinação direta à codificação. Tudo é código. Ou seja, tudo passou a ser flexível, podendo ser melhorado, corrigido, transformado, ampliado e programado em função da demanda, do custeio e das exigências regulatórias. Na terceira década do século (2000-2030), o impulso da automação na saúde já mostrava evidências claras para sua adoção, como: (1) Low-code; ou a capacidade de criar aplicativos de grande alcance (“à prova de futuro”); (2) PaaS (plataforma como serviço), onde ninguém precisava mais comprar, remanejar ou substituir infraestrutura tecnológica a cada seis meses; (3) Governança: tendo uma automação altamente aditável, difícil de burlar, severa em autoidentificar falhas e, acima de tudo, totalmente gerenciável remotamente, passou a ser natural a governança on-line dos processos; (4) Embedded-intelligence: cada vez foi mais possível integrar plataformas de aprendizado de máquina, ou trazer dentro de sua engenharia algoritmos de seleção, personalização, setorização e até de suporte a decisão clínica.

Cinco anos antes de RMS@39 assumir o MS, todos os sistemas de saúde universais já usavam o modelo RaaS (Roboticsas-a-Service), com os healthcare-bots inseridos em todos os processos dentro da jornada do paciente, como: (1) acesso instantâneo ao atendimento; (2) identificação real-time da satisfação do paciente; (3) monitoramento corporal e comportamental do usuário; (4) ‘botização’ das transações de compra de bens e serviços de saúde; etc. Depois da experiência de RMS@39, o Ministério da Saúde voltou a ter um humano no comando. Somente em 2052 uma máquina foi eleita presidente do país.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute