"A ciência sem fé é manca. A fé, sem ciência, é cega" (Albert Einstein)
A fosfoetanolamina é uma substância que foi sintetizada pela primeira em 1936 por Edgar Laurence Outhouse, do Departmento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting, ligado à Universidade de Toronto, Canadá. No início dos anos 90 esta substância começou a ser estudada por Gilberto Orivaldo Chierice que integrava o Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo. A partir de resultados em alguns modelos experimentais em linhagens celulares de câncer em animais, teve início o uso em alguns pacientes portadores de câncer.
Apesar de não ter registro na Anvisa e nunca ter sido testada em humanos, a fosfoetanolamina era distribuída gratuitamente na USP-São Carlos, até que uma portaria do Instituto de Química proibiu a atividade. Então, pacientes entraram em queda de braço judicial com a USP para obter a substância, com base em relatos espontâneos, sem os testes clínicos apontados pela comunidade científica internacional como fundamentais.
A Nature, uma das publicações científicas mais conceituadas do mundo, condenou em editorial a liberação da fosfoetanolamina no Brasil. O editorial da revista afirma que é improvável que a droga realmente seja um milagre e cure todo e qualquer tipo de câncer sem efeitos colaterais, como alegado, e classificou a situação brasileira de distribuição de substâncias experimentais como "extrema" 4.
Em meio à polêmica e a um debate entre entusiastas e céticos, o governo federal anunciou investimento na pesquisa com a substância. O anúncio, visto como resultado de pressão política, foi alvo de críticas de pesquisadores e cientistas. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e o Ministério da Saúde definiram a necessidade de realização de estudos para verificar a segurança e a eficácia da fosfoetalonamina em instituições nacionais de excelência e com reconhecida experiência na pesquisa e no desenvolvimento de fármacos. No total, o MCTI pretende investir, em três anos, R$ 10 milhões nos estudos da fosfoetanolamina, valor excepcional para a ciência brasileira.
Os primeiros resultados nos testes feitos pelo Ministerio da Saúde foram negativos, ou seja, a substância mostrou atividade nula em linhagens. Ainda assim, a Câmara de Deputados, o Senado e a Presidência da República liberaram a substância, mesmo com parecer contrário da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O Conselho Federal de Medicina (CFM) e todas entidades científicas foram contrários à liberação no cenário vigente, pela falta de informação sobre segurança e efetividade. Foi cogitado, pelo Ministério da Saúde, que fosse liberado como “suplemento”, o que minimizaria a falta completa de uma bula minimamente séria.
Neste imbróglio instalado, qualquer posicionamento gera reações contrárias. De um lado, milhares de pacientes querem acesso a qualquer coisa que possa eventualmente trazer benefício, mesmo que seja sustentada em relatos isolados de sucesso, sem o rigor científico demandado por pesquisadores e ainda que possa, pela ausência de dados, piorar o câncer. O tema é temperado por pontos quase ideológico, com acusações de sabotagem proposital a fim de proteger uma indústria bilionária. A leitura de que a cura do câncer já existe e médicos, pesquisadores e pacientes curados e suas famílias conspiram com o silêncio para que a indústria siga vendendo velhas drogas, mesmo que casos novos surjam de forma gigantesca todo ano, alimenta discussões intermináveis.
Do outro lado, uma comunidade médica está preocupada com a absoluta falta de critérios técnicos para as demandas de registro de substância sem o apropriado roteiro científico. Dados de interação medicamentosa, resultados a curto e longo prazo comparados com placebo e riscos de utilização de substância química não são disponíveis em publicações adequadas e acessíveis para avaliação da comunidade global, que tem lutados contra o câncer há décadas.
Alegar que um remédio tem efeito positivo através de relatos não controlados e, com isso, passar a comercializá-lo, realmente, traz riscos. Já na metade do século passado, mais de 100 crianças morreram em decorrência do aditivo que dava sabor a um elixir para tosse, o que mostrou que o rigor para medicamentos deveria ser maior. Desde então, várias drogas já prometeram resultados maravilhosos, geralmente curas de doenças graves sem toxicidade, com base em relatos isolados e sem qualquer controle de outras variáveis básicas, como tratamentos associados. Todos os produtos alardeados como milagrosos naufragaram em algum tempo, não antes de arrastar muitos inocentes que procuravam respostas onde a ciência ainda não havia chegado.
Etapas científicas, que vão desde testes em laboratório até estudos clínicos, permitem separar efeitos — tanto positivos como negativos — do novo produto comparados com os de um placebo (substância sem atividade farmacológica usada como controle) ou com os de outros tratamentos mais estudados. É um processo caro, que demanda número grande de casos e estatísticas sofisticadas, mas é a forma responsável de fazer ciência.
Separar o efeito placebo é sempre um desafio. A American Cancer Society estima entre 20% a 30% de algum tipo de efeito placebo em qualquer intervenção. Não é infrequente que estudos clínicos descrevam até 5% de resposta com uso de “pílulas de farinha" (portanto 1 em cada 20 pessoas que usaram placebo). É um dos motivos da necessidade de estudos chamados de fase III (comparativos) e, idealmente, duplo-cego (nem paciente e nem pesquisador sabe o que está sendo usado antes da abertura programada dos dados). Sem avaliação pertinente, não se pode saber se a substância é positiva, nula ou ate mesmo deletéria.
Evidente que todo paciente tem direito legítimo de entrar em protocolos de tratamentos experimentais, mas a regulação desses protocolos é muito cuidadosa e regrada por rotinas internacionais de avaliação, a fim de evitar uma indústria do desespero. Itens como termos de consentimento aprovados por comitês de ética e ausência de custo para o paciente são universais.
Algumas questões não estão respondidas e merecem reflexões amplas: o que levaria pessoas a abandonar tratamentos amplamente avaliados e com taxas de sucesso conhecidos para embarcar em substâncias que apresentam mais incertezas do que documentação científica? As respostas mais comuns são toxicidade e baixas taxas de repostas de grande parte das drogas vigentes, o que é fato, mas o componente de descrédito nas instituições é eloquente nestes tempos.
De toda essa discussão, temos lições que devem ser aprendidas, como necessidade de investigação científica com financiamento realista e cuja prioridade não seja lucro elástico; etapas regulatórias ágeis e transparentes e acesso a protocolos de pesquisa sérios e desburocratizados. Outro ponto visceral é que se tenha abordagem honesta com as pessoas sobre quais reais expectativas que se pode ter com cada tratamento. Todos torcemos para que remédios se provem excepcionais, e temos que ter fé de que a ciência nos dará respostas.