Em 1 de dezembro de 1983, portanto há 40 anos, um dos principais jornais do mundo (o britânico The Guardian) publicou uma pergunta em seu editorial: “O correio-eletrônico pode prejudicar o correio convencional?” O texto explicava: “Não se sugere que o correio-eletrônico usurpe o telefone da mesma forma que o telefone tomou o lugar do telégrafo. Impensável. Mas pode ameaçar os serviços postais tradicionais, minando sua principal fonte de renda: 75% do correio é correio-comercial. Uma empresa americana, por exemplo, já operando um sistema maduro de correio-eletrônico, tem uma visão interessante. Eles dizem que o e-mail tende a ser informal em estilo (em oposição ao correio escrito), o que torna as pessoas mais ousadas, encorajando aqueles que não se atreveriam a dizer algo na sua cara a enviar mensagens descaradas".
Há quatro décadas, achávamos que o e-mail era uma brincadeira de desocupados, mais um hype cuja principal característica era o modelo de comunicação assíncrona, que facilitava enviar mensagens inconvenientes. O editorial ironizava a ideia de que deveríamos “pagar para receber uma mensagem” (serviço de assinatura no provedor) e não para enviar, como nos correios tradicionais. Além disso, em 1983, os editores deixavam uma provocação no ar: “O correio-eletrônico é uma solução em busca de um problema. Se você tem uma conta e conhece os acessos (a computação é a mágica do momento) pode "entrar" em sua caixa de correio, descobrindo se as pessoas deixaram mensagens para você, e pode lê-las ou ignorá-las a seu bel-prazer. Você também pode trabalhar a qualquer hora, pois pode acessar o sistema em casa. Indivíduos enviam e-mails uns aos outros por razões sociais, por "diversão", ou por não ter o que fazer, mas levará algum tempo até que a natureza "clubby" do serviço dê lugar a um uso mais amplo”. Em 2023, metade do mundo (4,2 bilhões) troca e-mails diariamente. Aliás, hoje não existem só mensagens virtuais, existem empresas virtuais, indivíduos virtuais (avatares), serviços virtuais, dinheiro virtual, etc.
Este ano o hype foi o ChatGPT. Ele entrou em nossa vida como uma nova “camada intelectiva”, algo como um “up-grade de atualização cognitiva”, ou um ‘novo normal’, como os pandêmicos gostavam de bravatear. As GenAIs ‘confundiram as nossas pernas’ e trouxeram ebulição geral. Mas, como no caso do e-mail, relaxe, sairemos bem do outro lado. As novas gerações estão ficando boas nessa coisa de “restartar a mente”, ou “resetar as convicções”, ou simplesmente “antecipar o futuro plausível”. Ocorre que em 2023 não houve só GenAIs. Muitas outras descobertas, inovações, tendências, pesquisas e avanços ocorreram no bioma saúde. A Ciência da Vida não cessa de surpreender. Os avanços nem sempre aparecem nos jornais, não são manchete, não viram conversa de happy-hour, mas podem estar, na surdina, transformando as ‘condições de saudabilidade humana’ e os ‘Sistemas de Saúde’.
Como exemplo, vejamos quatro descobertas publicadas apenas em novembro de 2023, com chances de transformar os próximos 20 anos:
É o sabor e não o estômago que regula nossos hábitos alimentares
O fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936) propôs há mais de um século que a visão, o cheiro e o sabor dos alimentos eram importantes na regulação da digestão. Estudos de 1970 e 1980 também comprovaram que o sabor pode ‘restringir a rapidez com que comemos’. Todavia, em 22 de novembro de 2023, uma equipe liderada pelo pesquisador Zachary Knight, professor de fisiologia da UCSF (University of California, San Francisco), publicou um estudo na Nature (“Sequential Appetite Suppression by Oral and Visceral Feedback to the Brainstem”) mostrando que o tronco cerebral usa uma lógica própria para controlar a rapidez e a quantidade do que comemos, utilizando dois diferentes tipos de sinais: (1) um vindo da boca; e (2) outro vindo, bem mais tarde, do intestino.
"Essa descoberta dá-nos uma nova base estrutural para compreender como controlamos a nossa alimentação", explica Knight. A pesquisa deve ajudar a revelar, por exemplo, como funcionam os medicamentos para perda de peso (Ozempic, por exemplo) e como torná-los muito mais eficazes e menos sujeitos a colateralidades adversas. Ou seja, essas drogas atuam na mesma ‘região do tronco cerebral’ que a pesquisa finalmente conseguiu estudar. “Agora temos uma maneira de desvendar o que está acontecendo no cérebro e o que faz essas medicações funcionarem”, disse ele. Quando os pesquisadores colocavam o alimento diretamente no estômago do rato, as células cerebrais chamadas PRLHs (liberador de prolactina) eram ativadas pela sinalização de nutrientes enviados pelo trato gastrointestinal. No entanto, quando permitiram que os ratos se alimentassem normalmente, os sinais do intestino não apareciam. Em vez disso, as PRLHs mudaram o padrão de atividade, passando a ser inteiramente controladas por sinais vindos da boca. “Foi uma grande surpresa identificar que essas células tenham sido ativadas pela percepção do paladar, mostrando que existem outros componentes que endereçam controle do apetite”, explicou Truong Ly, que faz parte da equipe.
Embora possa parecer contraintuitivo retardar a alimentação quando estamos com fome, o cérebro está, na verdade, usando o sabor de duas maneiras diferentes. Uma parte diz: “Isso é bom, ingira mais”; a outra parte, que observa o quão rápido estamos comendo, insinua: “Vá mais devagar ou ficará doente”. Essa descoberta abre portas para uma nova “concepção sobre controle de peso”. Fica cada vez mais claro “que é o sabor e não o estômago o que regula os hábitos alimentares”. Trata-se de uma notícia iluminista de 2023, capaz de transformar nos próximos anos a nossa relação com a obesidade. Um bálsamo para um planeta que já tem mais de 1 bilhão de obesos (OMS), sendo que só no Brasil “60% da população adulta já está acima do peso”. Em nosso combalido SUS, só a obesidade como fator de risco para hipertensão e diabete responde por 41% dos custos totais do Sistema.
Nossos olhos falam com nossos ouvidos, e já sabemos o que eles cochicham
Pode parecer uma heresia, mas os movimentos oculares podem ser decodificados por sons gerados no ouvido. Em outras palavras: nossa audição pode ser afetada por nossa visão. Os cientistas podem agora “identificar para onde os olhos de alguém estão olhando apenas escutando os ruídos de seus ouvidos”. Assim, sons auditivos fracos poderão ser usados para desenvolver “testes auditivos mais sofisticados e inovadores”. A pesquisa “Parametric Information about Eye Movements is sent to the Ears”, publicada em 21 de novembro de 2023 na PNAS (US National Academy of Science), mostrou que podemos agora “estimar o movimento dos olhos e a posição-alvo para onde eles olham apenas com uma simplória gravação (realizada por um simples microfone em nosso canal auditivo)”. Simples, assim. Genial, assim.
A pesquisa, desenvolvida por cientistas da Duke University, liderados por Jennifer Groh (professora e chefe dos departamentos de psicologia, neurociência e neurobiologia da universidade), existe desde 2018. Agora foi publicada, revelando um amplo e novo caminho para as “relações entre olhos e ouvidos”. Apenas sabendo para onde alguém está olhando, permite-nos prever como seria a forma de onda sonora do ouvido nesse instante. Compreender essa relação deve levar ao desenvolvimento de “novos e sofisticados testes clínicos de audição”. “Se cada parte do ouvido contribui com regras individuais para o sinal do tímpano, então elas poderão ser usadas como uma espécie de ferramenta clínica para avaliar qual parte da anatomia do ouvido está funcionando mal”, diz Stephanie Lovich, uma das principais autoras do estudo.
Durante muito tempo se pensou que os mecanismos de regulação do som apenas ajudavam a amplificar os sons suaves ou abafar os altos. Agora sabemos que esses mesmos mecanismos também são ativados pelos movimentos oculares, sugerindo que “o cérebro informa os ouvidos sobre o movimento dos olhos”. Um pouco parecido com as pupilas, que se contraem ou dilatam com o flash de uma câmera, ajustando a quantidade de luz que entra. Um conjunto de projetos avança agora para transformar essa descoberta em instrumentos de medição para pessoas com perda auditiva ou visual (entre os que têm 20 e 40 anos, a surdez já atinge 15% de toda a população humana).
Wearables coletam sons corporais para o monitoramento contínuo da saúde
Pesquisas, estudos e ensaios não devem ser apenas para novas descobertas, mas também para consagrar, ratificar e legitimar experiências e artefatos que precisam ganhar espaço de aplicação na Saúde. Há mais de 15 anos sabemos que sons corporais, como batimentos cardíacos ou gorgolejos estomacais, contêm dados importantes sobre a saúde das pessoas. Também sabemos que dispositivos (vestíveis) podem capturar continuamente esses sons, transferindo dados para smartphones ou tablets em tempo real. Assim, não deveria haver mais dúvida para qualquer médico que sons podem ser rastreados, cadastrados, transmutados e transformados em dados. Mas, em muitas partes do mundo, incluindo no Brasil, essa realidade ainda é discutida, contestada e médicos ainda resistem em prescrever qualquer tipo de device para controle contínuo da saúde.
Nesse sentido, pesquisadores da Northwestern University (EUA) apresentaram o estudo “Wireless Broadband Acousto-mechanical Sensing System for Continuous Physiological Monitoring”, publicado na Nature Medicine em 16 de novembro de 2023. O objetivo era visceral: mostrar cabalmente que a mais econômica e eficiente forma de monitorar pacientes é com wearables simples, baratos e idôneos. Eles testaram ‘dispositivos vestíveis’ em 15 bebês prematuros com distúrbios respiratórios e motilidade intestinal; e 55 adultos, incluindo 20 com doenças pulmonares crônicas. Os dispositivos não apenas funcionaram clinicamente com precisão, mas também ofereceram novas funcionalidades que serão introduzidas em cuidados clínicos contínuos.
John A. Rogers, professor de Engenharia Biomédica e Cirurgia Neurológica da Northwestern University, um pioneiro da bioeletrônica e líder do projeto, explica: "Atualmente, não existem métodos para monitorar ou mapear continuamente sons corporais sem cabeamento, sejam nas residências ou em ambientes hospitalares. Os médicos precisam colocar um estetoscópio convencional ou digital em diferentes partes do tórax e costas para ouvir os pulmões ponto a ponto. Em estreita colaboração com nossas equipes clínicas, decidimos desenvolver uma nova estratégia para monitorar pacientes em tempo real, de forma contínua e sem o ônus de uma tecnologia rígida, volumosa e com fios". Ankit Bharat, cirurgião torácico da Northwestern Medicine, também coautor da pesquisa, vai mais além: "Uma das principais vantagens dos wearables é ser capaz de ouvir e comparar simultaneamente diferentes regiões dos pulmões. Simplificando: é como se até 13 médicos altamente treinados ouvissem com seus estetoscópios e simultaneamente diferentes regiões dos pulmões, com suas mentes sincronizadas para criar uma avaliação contínua e dinâmica da saúde pulmonar”.
Encapsulados em silicone macio, cada dispositivo da pesquisa (40 mm x 20 mm x 8 mm) continha uma unidade de memória flash, uma bateria, chips, recursos Bluetooth e dois minúsculos microfones (um voltado para dentro, em direção ao corpo; e outro voltado para fora, em direção ao exterior). Ao capturar sons em ambas as direções, um algoritmo separa os sons externos (ambientes ou órgãos vizinhos) dos sons internos do corpo. “Pulmões não produzem som suficiente para uma pessoa normal ouvir. Não são altos o suficiente e os hospitais e consultórios podem ser lugares barulhentos. Quando há pessoas conversando por perto, ou máquinas apitando, a leitura pode ser incrivelmente difícil e sujeita a muitos erros de interpretação. Assim, um aspecto importante na tecnologia utilizada no estudo é que ela pode corrigir e separar os sons ambientes", explicou Bharat.
“Independentemente da localização do dispositivo, a gravação contínua fornece dados objetivos sobre os níveis de ruído aos quais os bebês, por exemplo, estão expostos”, explica Wissam Shalish, neonatologista do Hospital Infantil de Montreal e também coautor da pesquisa. No terceiro trimestre da gravidez, o sistema respiratório dos bebês amadurece para poderem respirar fora do útero. Assim, os nascidos nos primeiros estágios do terceiro trimestre têm maior probabilidade de desenvolver problemas pulmonares e complicações respiratórias. Os wearables acústicos oferecem a oportunidade de determinar de forma segura e não intrusiva a 'assinatura' de cada bebê pertinente a seus movimentos. Sons pulmonares, cardíacos e motilidade intestinal podem ser telemonitorados dia e noite, seja nas unidades hospitalares ou residenciais. “Com esses sensores wireless podemos capturar diferentes regiões dos pulmões, avaliando seu desempenho em relação a outras regiões corporais”, explica Bharat. Nos EUA, doenças cardiovasculares e respiratórias já são a primeira e a terceira principais causas de morte em adultos (fonte: CDC, EUA).
Bactérias têm memórias, as armazenam e as transmitem por gerações”
Cientistas da University of Texas at Austin (UT), EUA, talvez tenham feito uma das mais importantes descobertas de 2023: “bactérias podem desenvolver memórias sobre quando e como devem formar estratégias que causem infecções perigosas nas pessoas, tais como resistência a antibióticos e enxames bacterianos (quando milhões de bactérias se juntam numa única superfície)”. A descoberta tem aplicações exponenciais na prevenção e combate a infecções bacterianas.
A descoberta está no estudo “A Heritable Iron Memory Enables Decision-making in Escherichia coli”, publicado em 21 de novembro de 2023 também na US National Academy of Science. Os pesquisadores descobriram que “a bactéria E. coli usa níveis de ferro como forma de armazenar informações sobre diferentes comportamentos, que podem ser ativados em resposta a determinados estímulos”. Os cientistas já haviam observado que bactérias que tiveram uma experiência anterior de ‘enxameação’ (movendo-se como um coletivo) melhoram o desempenho da ‘enxameação subsequente’. Agora os cientistas da UT descobriram o porquê. “As bactérias não possuem neurônios, sinapses ou sistema nervoso, então quaisquer lembranças não são iguais a ‘apagar velas em uma festa de aniversário’, mas são como informações armazenadas em um computador. Elas não têm cérebro, mas podem recolher informações do seu ambiente e, se encontrarem esse ambiente com frequência, podem armazenar as informações e acessá-las rapidamente mais tarde para seu benefício”, explicou Souvik Bhattacharyya, líder da pesquisa e diretor do Departamento de Biociências Moleculares da UT.
O ferro, sendo um dos elementos mais abundantes na natureza, representa a chave dessa descoberta. Os cientistas observaram que as células bacterianas com níveis mais baixos de ferro eram melhores em enxameação. O estudo mostra que essas ‘memórias férreas’ persistem por pelo menos quatro gerações e desaparecem na sétima. Explicou Bhattacharyya: “Os níveis de ferro são o alvo definitivo para a terapêutica porque ele é um fator importante na virulência bacteriana. Assim, quanto mais soubermos sobre o comportamento bacteriano ao nível férreo, mais fácil será combatê-lo”.
Na mesma direção, inúmeros outros estudos, pesquisas e descobertas foram forjados em 2023. Centenas, quiçá milhares de novos avanços foram propostos, ou aprovados, ou implantados neste ano. No meio de guerras, tragédias econômicas e dúzias de acidentes colossais da natureza, a Ciência não esmorece. O e-mail, que aniversaria em dezembro de 2023, mudou a comunicação humana. As GenAIs, que emergiram em 2023, estão mudando as relações entre o homem e as máquinas. As novas descobertas e avanços ocorrem de forma tão rápida que a cada novo ano ‘podemos pensar que se passaram 10 ou 20”. Aqui vale relembrar as reflexões sobre o Tempo de Agostinho de Hipona, conhecido como Santo Agostinho (354 - 430), o mais importante filósofo-teológico da história.
“O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se eu quiser explicar a quem me pergunta, já não sei”, escreveu ele. Para Agostinho, o tempo não é apenas uma sequência de eventos mensuráveis, mas uma vivência interior, profundamente entrelaçada a nossa percepção e experiência. Para ele, o tempo não tem realidade em si, é uma invenção do homem, constituído por três nadas: o passado, que não existe mais; o futuro, que ainda não existe; e o presente, que de tão fugaz e efêmero tão pouco pode ser percebido. É o tempo interior que conta. Os triunfos da ciência e da tecnologia em 2023 estão na essência do ideário temporal de Agostinho: o que o tempo faz conosco não interessa. A única coisa que realmente importa é o que nós fazemos com ele.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)