O sistema de saúde brasileiro, tanto público quanto privado, é voltado historicamente ao chamado “cuidado à doença”, ou seja, tem como foco cuidar do paciente a partir do momento em que ele apresenta uma doença, e não antes disso. Nos últimos anos, vem ganhando espaço no Brasil o “cuidado à saúde”, promovido especialmente por meio da Atenção Primária à Saúde (APS), centrado no modelo de atendimento preventivo.
Apesar dos benefícios comprovados desse conceito diferenciado de tratar a saúde, o seu alcance está longe do ideal, principalmente considerando-se a necessidade de mudanças urgentes no modelo de saúde no país.
O Brasil vivencia uma importante inversão em sua pirâmide demográfica, o que deverá provocar impactos no sistema de saúde. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2021 apontam que a proporção de idosos em relação à população, que em 2010 era de 7,3%, poderá chegar a 40,3% em 2100. No sentido inverso, o porcentual de jovens com menos de 15 anos tende a diminuir de 24,7% para 9%, na mesma base de comparação.
É consenso que o crescente envelhecimento da população brasileira exigirá uma adequação da organização do sistema de saúde, levando em conta os novos perfis demográficos e epidemiológicos decorrentes desse processo. Como se sabe, os idosos são um público em que as doenças crônicas ocorrem com maior frequência e, mesmo na ausência delas, as perdas funcionais se fazem mais presentes, demandando maior atenção das empresas de saúde e exigindo uma estruturação do cuidado de forma diferente da adotada para adultos mais jovens.
No sistema atual, tem prevalecido o atendimento ao idoso por meio de uma prestação de serviços de saúde fragmentada e pontual, o que resulta em múltiplas consultas de especialistas, no não compartilhamento de informações/prontuários e numa profusão de fármacos, exames clínicos e imagens, entre outros procedimentos. O resultado dessa combinação é a sobrecarga do sistema de saúde público e privado, com impacto financeiro generalizado e sem benefícios significativos à saúde e à qualidade de vida dos pacientes.
Como articular serviços hoje isolados, sem integração de dados e sem comunicação entre os profissionais de saúde? O cuidado à saúde se apresenta como uma alternativa com inúmeros benefícios, capaz de solucionar essas e outras vicissitudes do sistema. Entre os benefícios desse novo modelo está o fato de proporcionar um novo olhar sobre o sistema de saúde, que possibilita um atendimento mais efetivo à população, sobretudo aos idosos, além de corrigir distorções que provocam ineficiências, atendimento insatisfatório e custos elevados ou desnecessários.
Para a população, essa alternativa envolve a integralização dos cuidados, que proporciona mais saúde, qualidade de vida e longevidade. Para os gestores, sejam planos de saúde ou mesmo o Sistema Único de Saúde (SUS), o principal benefício é a utilização do sistema de saúde de forma mais eficaz, racional e ordenada e, consequentemente, com menos custos e melhores resultados.
Esses benefícios são ainda mais válidos quando falamos da população com mais de 60 anos, que está em acelerado processo de crescimento no país e tem sido o público-alvo de empresas que enxergam nesses clientes a possibilidade de ir além do cuidado à doença e oferecer o cuidado à saúde de forma integral.
A experiência internacional mostra que essa mudança não só é possível, como traz resultados bastante positivos. Na Holanda, o sistema de cuidado desenvolvido pela empresa Buurtzorg há 15 anos revolucionou a área de saúde, possibilitando ao país uma economia de 40% dos recursos no setor. Esse modelo vitorioso de cuidado já foi replicado em 24 países, entre os quais o Brasil, por meio da Laços Saúde.
Aclimatado ao país, o modelo está assentado em assistência associada à tecnologia (cuidado híbrido), baseado nos pilares de estratificação de risco funcional e cognitivo, análise de ambiência, riscos associados à polifarmácia e existência de redes de apoio, em que a coordenação do cuidado e o autocuidado são pontos focais.
Em dois anos de aplicação dessa metodologia em solo brasileiro, foram alcançadas conquistas importantes, como a redução de idas ao Pronto Socorro e de internações desnecessárias, com a solução de 86% dos chamados nas próprias residências. Essa experiência mostrou, na prática, que é possível evitar o uso inadequado de estruturas mais complexas e custosas e internações desnecessárias.
Houve também uma diminuição de polifarmácia e gestão de medicamentos, o que permitiu atingir, em apenas quatro meses, o controle de hipertensão e diabetes em mais de 90% dos pacientes acompanhados com essas patologias. O mais impactante é que, para se controlar essas doenças crônicas, na maior parte das vezes é preciso reduzir o número de medicamentos, e não aumentar.
Além disso, por meio de uma triagem de saúde mental aplicada à rotina assistencial, constatou-se que 20% dos pacientes atendidos eram portadoras de depressão moderada a grave. Eles foram inseridos no cuidado integrado em saúde mental, comprovando a importância desse olhar holístico.
Um ponto fundamental para o sucesso desse método é a capacitação adequada dos profissionais que fazem atendimento gerontológico. Essa capacitação compreende a revisão na forma de abordagem aos pacientes, abrangendo desde como se deve escutá-los até cuidados mais específicos. Poucos profissionais de saúde estão preparados para essa nova abordagem e não há ainda uma disciplina ou especialização nessa área, mas ainda é tempo de mudarmos esse cenário.
Relegar o cuidado à saúde a um segundo plano soa como desperdiçar uma oportunidade única para fazer frente aos desafios impostos neste momento, com ganhos significativos tanto para o sistema de saúde como para os pacientes.
*Martha Oliveira é médica, especialista em envelhecimento populacional, e CEO da Laços Saúde.