Saúde não tem preço, mas medicina tem custo. O trocadilho chama a atenção para a questão que envolve todos brasileiros: preservar a saúde tem custo alto. E a discussão é mais que oportuna quando se fala de um momento em que muitas decisões individuais repercutem na coletividade. Uma pessoa que decide dirigir sem cinto de segurança e em alta velocidade – por considerar uma liberdade pessoal - tem maior risco de se envolver em um acidente e precisar de um hospital, vai ocupar a emergência, leito hospitalar, bloco cirúrgico e recursos de saúde que todos podem precisar, além da possibilidade de causar danos a outros cidadãos. Se essa mesma pessoa tiver um plano de saúde, pelo princípio básico do mutualismo de qualquer seguro, o fato de utilizar o plano encarece a mensalidade do grupo. Se for pelo SUS, não só usa o recurso que já é parco, como sobrecarrega um sistema já lotado. Alguém tem que pagar a conta. Quebec, no Canadá, já debate sobre cobrar tributos adicionais a quem toma a decisão de não se vacinar para COVID durante a pandemia, por exemplo. Tema sensível e sujeito a críticas de todos os lados, em tempos em que expor uma discussão técnica rapidamente é atropelada por argumentos sanguíneos. Dados incontestes de mundo real confirmam diferenças enormes de morbimortalidade e uso do sistema de saúde entre vacinados e não vacinados em todo o planeta. Gastar um recurso, o qual é finito, com alguém que optou por correr maior risco, reduz a capacidade do sistema em investir naqueles que se protegeram, ou nos que tem o infortúnio de ter câncer, doença cardíaca, doenças genéticas...
A despeito do impasse ético, a questão tem sentido econômico e esbarra muito mais em pontos técnicos, como a dificuldade de estimar de forma confiável qual o valor específico de contribuição adicional de cada indivíduo. Os canadenses entendem não ser justo que 10% da população que recusa vacina traga tanto peso para os 90% que se vacinaram. A empresa de aviação norte-americana Delta também tomou decisão nessa direção: funcionários que recusam ser vacinados terão que contribuir com uma mensalidade maior para plano de saúde da empresa, já que cada internação por COVID, muito mais frequente em pessoas sem vacinação completa, custa em média U$ 40 mil dólares para a empresa. Outro caso recente foi um homem de 31 anos que saiu da fila de transplante cardíaco por recusar-se a ser vacinado. A equipe médica entendeu que o paciente não seguiu os protocolos previstos para ser priorizado. O hospital exige a vacina contra Covid-19 e determinados comportamentos e estilos de vida para os candidatos a transplante para propiciar a melhor chance de uma operação ser bem-sucedida e otimizar a sobrevivência do paciente após o transplante, já que seu sistema imunológico é drasticamente suprimido, e existe escassez de órgãos para um procedimento de alto custo. Quem se identifica com ele deve ficar chocado. Quem se identifica com o próximo da fila, deve achar a medida correta. O fato é que esses anúncios aumentaram as taxas de vacinação e reduziram a sinistralidade relacionada ao uso dos sistemas de saúde.
Esses resultados parecem reforçar os argumentos dos professores Anupan Jena e Christopher Worsham, da escola de medicina de Harvard, publicados recentemente em editorial do New York Times. Eles sugerem que campanhas de persuasão não tem tanto efeito como imposições pragmáticas. As pessoas estão acostumadas a seguir regras, como pagar impostos, enquanto demandas voluntárias envolvem revisão de conceitos e ideias e, ainda mais difícil, convencer pessoas que elas podiam estar erradas e mudar de opinião. Na prática, medidas coercitivas já existem: não se consegue viajar para vários países sem esquema vacinal completo. Um familiar com mãe idosa me questionou como proceder com a cuidadora que se recusava a se vacinar e, por mais acostumada que estava com ela, preferia buscar outro profissional para essa tarefa. Enfim, a liberdade de escolha de se vacinar não vem sem um preço a ser pago pelo individuo e pelo sistema de saúde. A questão poderia se ampliar ao fumante, ao obeso, ao sedentário… mas a complexidade do tema não necessariamente significa sepultar a discussão sobre soluções justas. Buscar um debate saudável e inteligente é um caminho que ilustra maturidade social. O problema é que não temos todo o tempo para uma mudança que poderia levar gerações para consolidar. Nenhum sistema de saúde do mundo trabalha com folga. É na pandemia que se percebe que não se pode errar e cada valor gasto de forma ineficiente pode custar vidas, não só de quem toma a decisão individual, mas a vida de quem esperava pelo mesmo recurso.
Originalmente publicado no jornal Zero Hora, caderno DOC, de 06/fevereiro.