Embora a primeira patente moderna do pedômetro tenha sido concedida em 1924 (John Harwood), é possível que o primeiro ‘artefato móvel para saúde’ tenha sido inventado em 1778, quando o relojoeiro Abraham-Louis Perrelet desenvolveu o primeiro relógio de corda automática, sensível ao movimento e capaz de aferir distâncias e passos durante uma caminhada. Quase 250 anos depois dele, a “mecanização” dos serviços de saúde mudou de nome, passando a ser conhecida como “digitalização & virtualização” e o relógio-automático de Perrelet tornou-se um “vestível”, que em 2022 deve alcançar um bilhão de usuários (fonte: Statista). Assim, o mercado de digital health, que há três décadas era uma quimera, deve atingir quase US$ 660 bilhões em 2025 (antes da Covid-19 a expectativa não chegava a US$ 175 bilhões).
Um sinal objetivo dessa evolução digital veio do paper “Telehealth: A quarter-trillion-dollar post-COVID-19 reality?”, publicado pela McKinsey em 9 de julho último. Ele joga vibrações estroboscópicas sobre a indústria de saúde, animando empreendedores a darem forma final a qualquer novo healthcare-gadget parido em suas garagens. O artigo é uma análise consistente e bem delineada mostrando como a saúde se alinha a cosmologia digital. Embora o paper foque no ‘sistema norte-americano de saúde’, não é difícil extrair dele um paralelo com os gastos sanitários mundiais. O documento reforça a previsão de 2020, feita pela própria consultoria, estimando que “até US$ 250 bilhões dos gastos com saúde nos EUA poderiam estar sendo potencialmente transferidos para o atendimento virtual ou sendo habilitados virtualmente”. Não é presunção, mas uma crível análise quantitativa. Segundo o CMS (Centers for Medicare & Medicaid Services), os EUA gastam perto de US$ 3,8 trilhões anuais com saúde, algo perto de 42% do gasto mundial (relatório da OMS, “Global spending on health: Weathering the storm”, mostra gastos globais de US$ 8,3 trilhões). Ou seja, se o documento da McKinsey projeta uma virtualização ao redor de 6,5% de todos os gastos sanitários dos EUA, é muito provável que uma quantificação similar possa ser aplicada ao resto do mundo. Mais do que isso, ela poderia facilmente ser corrigida ‘à maior’ pelo fato de os EUA só possuírem 4,5% da população mundial. Nesse sentido, é provavelmente que a Covid-19 esteja forçando a digitalização de boa parte da circulação universal de bens médico-assistenciais intangíveis (serviços), com desembolso monetário superior a US$ 0,5 trilhão. Só na Ásia, o percentual per capita de ‘healthcare-digitalization’ já cresceu mais de 30% nos últimos 18 meses. Assim, não estaria longe da realidade estabelecer que entre 5 e 10% de todo o desencaixe global com saúde esteja em pleno processo de virtualização.
O número da McKinsey está centrado nos gastos totais do Medicare, Medicaid, Commercial OP (outpatient), consultórios, home care, etc., não sendo, portanto, uma matemática cabalística, embora se concentre unicamente no complexo Sistema de Saúde dos EUA. A conclusão do estudo é que 20% do total desses gastos está em franca migração para o ambiente virtual, contemplando no cálculo premissas que pouco ou nada diferem de outras nações que avançam rapidamente para uma Economia Digital na Saúde. O estudo sugere, por exemplo, que (1) quase 20% de todas as consultas presenciais emergenciais estão sendo transformadas em serviços virtuais; ou (2) 24% das visitas ambulatoriais estão sendo direcionadas para consultas remotas (com 9% dos atendimentos em modo semi-virtual); e (3) até 35% de todos os atendimentos domiciliares entrando em franca transição para ambientes virtuais. No Brasil, por exemplo, os prognósticos antes da pandemia já mostravam que a “telemedicina ambulatorial teria força de reter até 2024 quase 25% de todas as consultas médicas no primeiro atendimento”. Com a pandemia, é possível alcançar esse percentual ainda antes. Nessa direção, o “quarto de trilhão de dólares virtualizados nos EUA” teriam uma equivalência inequívoca com o “meio trilhão virtualizado globalmente”, não surpreendendo se esse número alcançasse US$ 1 trilhão em 2023.
Vale salientar que o alcance da “digitalização” na saúde é muito maior do que a sua simples “virtualização”. Mesmo assim, é possível estabelecer que algum nível de ‘saúde digital’ já tenha atingido globalmente quase meio bilhão de indivíduos. Quando um profissional de saúde indica um medicamento a seu paciente pelo WhatsApp ele já está interagindo virtualmente. Se adquirimos o medicamento por meio do varejo farmacêutico digital (eCommerce) também haverá uma transação virtual com a Cadeia de Saúde, e assim sucessivamente. Uma ‘consulta-telemédica’ bem-sucedida já é capaz de desencadear em média outras três num período de 5 semanas (avaliação feita nas redes sociais pela interação-testemunhal de usuários do serviço). Se nesses meses pandêmicos a ‘saúde conectada’ alavancou o setor com essa magnitude, o que acontecerá nos próximos 3 ou 5 anos? O que isso significa? Redução de gastos na saúde? Não necessariamente, visto que a carga de patologias ainda é muito maior do que a oferta de serviços médicos (presenciais ou digitais). Mas, acima de tudo, significa que essa virtualização mostra um novo prumo, uma direção progressista e um caminho irreversível, principalmente quando se considera não só o custeio dos serviços médicos, mas também a possível redução de iniquidade e a maior conveniência dos usuários.
Se a escalada de virtualização & digitalização surpreende, é importante lembrar dois fatores que devem acelerar ainda mais esse fenômeno: (1) a introdução do 5G; e (2) o crescente desenvolvimento da Computação Quântica (os qubits possuem o potencial de fazer os supercomputadores serem milhões de vezes mais poderosos). ‘Connected Healthcare’ é um amplo conceito multidisciplinar que progride na intersecção da tecnologia digital com a assistência médica. Assim, se um desses dois fatores acelera o outro avança em similar velocidade. Trata-se de um processo que adensa e melhora a forma como a saudabilidade é acessada, fornecida e consumida. O relatório “Digital Health Primer: Healthcare Digital Transformation Is Here to Stay” produzido pelo banco Credit Suisse e publicado em junho de 2021, mergulha de forma imparcial nesse movimento. “Em 2020, os empreendimentos em digital health viram um ano como nenhum outro, com uma mudança temática na liquidez para investidores de risco em saúde, com aumentos nas atividades de IPO e M&A. Conduzido pela Covid-19, o financiamento cresceu em notáveis 72% a partir de um recorde estabelecido em 2018, quando chegou a US$ 14 bilhões investidos (hoje o financiamento total já atinge US$ 26,5 bilhões)”, explica o documento.
Mas talvez o avanço decisivo na vitualização global da saúde venha do fenômeno “GAFAM-healthcare-platforms”, ou seja, o impulso que Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (juntas conhecidas pelo acrônimo GAFAM), estejam promovendo no ecossistema sanitário. O CEO da Apple, Tim Cook, previu em 2019: “se você olhar para o futuro, e olhar para trás, poderá perguntar: 'Onde terá sido a maior contribuição da Apple para a humanidade?' a resposta será: na Saúde”. Essas 5 gigantes concentram um poder de fogo inimaginável para propelir mercados, e todas vêm ampliando de forma excepcional os investimentos em saúde, principalmente com a Covid-19 (as cinco alcançam uma capitalização de mercado superior a US$ 4,5 trilhões). O estudo “An apple a day – How the Platform Economy Impacts Value Creation in the Healthcare Market”, publicado em abril de 2021 no Springer Nature Switzerland, acompanha essa trajetória.
Vejamos o caso de Leslie, uma gestante de 36 anos, moradora de São Francisco (CA) e prestes a dar à luz. Ela segue o trajeto até a maternidade no Uber Saúde (serviço especial voltado para essa demanda). No caminho, ela acompanha o ritmo de suas contrações no Ovia Pregnancy, um aplicativo de monitoramento da gravidez. Chegando à maternidade, ela compartilha com a enfermeira o seu prontuário médico no Apple Health Record. Leslie é acompanhada a distância por seu médico particular, que trabalha on-line no Cloud for Healthcare, serviço que a Microsoft introduziu em 2020, sendo voltado aos profissionais de saúde (agendamento, condução de visitas virtuais, monitoramento de pacientes, etc.). Ela possui uma conta na Amazon Pharmacy, que facilita o acesso a seus medicamentos e demais insumos (serviço disponibilizado pela Amazon também em 2020). Leslie tem no pulso um device Fitbit (adquirido pelo Google em janeiro 2021), que monitora o seu rendimento aeróbico diariamente. Ao chegar ao quarto hospitalar, ela faz uma breve teleconsulta com seu obstetra através da plataforma Amwell (que em 2021 construiu uma aliança de 100 milhões de dólares com o Google), sendo que ele consulta sua agenda no Care Studio (ferramenta do Google para schedule médico). Na bolsa, Leslie ainda possui um Apple Watch, que usava antes da gravidez, mas que voltou a utilizar depois que sua seguradora (UnitedHealthcare) fechou um acordo de acesso com a Apple. Você e Leslie tem algo em comum: vão tropeçar cada vez mais com as tech-five dentro da Cadeia de Saúde.
Assim, a digitalização & virtualização dos serviços médicos receberá um impulso descomunal do GAFAM, sem contar, é claro, do “BAT”, que alinha Baidu, Alibaba e Tencent, as três maiores tech-giants asiáticas, que da mesma forma investem incessantemente em digital health. Embora essa corrida seja de grande monta, o fenômeno virtual-healthcare ainda está em fase embrionária: só chora e mama (venture capital), ainda vive de impulsos (regulação), caminha aos tropeços (conectividade), mas já ocupa de forma extraordinária o seu lugar na orbita da saúde coletiva.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator – HIMSS@Hospitalar Project
Head Mentor - eHealth Mentor Institute (EMI)