A Elevance Health, uma das três maiores seguradoras de saúde norte-americanas (117 milhões de beneficiários), anunciou em janeiro/2024 que “oferecerá smartphones de alta qualidade com serviços ilimitados de dados, conversas e mensagens de texto sem nenhum custo para indivíduos elegíveis, inscritos em alguns de seus planos de saúde afiliados ao Medicaid”. Antiga Anthem, a empresa prepara-se para seu mais ambicioso projeto em 2024: oferecer contratos agregados a dispositivos pré-carregados, com a experiência personalizada de seus beneficiários, dando-lhes acesso a ferramentas digitais de saúde. Trata-se de um programa de conectividade resultado da colaboração da empresa com as gigantes Verizon, Samsung, AT&T e T-Mobile. Quase um quarto dos adultos com rendimentos anuais inferiores a US$ 30 mil não têm um smartphone nos EUA (celular inteligente), sendo que 43% não têm acesso à banda larga domiciliar.
“Precisamos transformar o smartphone numa ferramenta de saúde que não só impulsione a inclusão digital, mas aumente a ‘educação em saúde’ com acesso direto aos seus cuidadores”, explicou Omid Toloui, vice-presidente de inovação da Elevance Health. Além dos aplicativos integrados ao próprio device, os aparelhos virão com materiais educativos sobre saúde (glossários), além de acesso a uma linha dedicada de atendimento ao beneficiário. Uma fala, que poderia ser aludida a qualquer liderança de sistemas de saúde do Ocidente, foi enunciada por Kurt Small, presidente do business Medicaid da Elevance Health: “A falta de conectividade à Internet e o acesso às tecnologias digitais continuam a ser barreiras significativas para muitos indivíduos, aumentando as desigualdades na saúde”.
Cerca de 17% dos adultos norte-americanos dependem de telefones móveis para procurar emprego, realizar trabalhos acadêmicos ou aceder a cuidados de saúde. Embora os celulares-convencionais (não smartphones) ajudem nas tarefas on-line básicas, eles são inadequados para aplicativos inteligentes que fornecem serviços rápidos, educação à saúde personalizada (no perfil do usuário) e acesso ao corpo clínico que o atende. A cobertura irregular, em áreas dependentes de torres de telefonia celular e outras infraestruturas deficientes, é crítica para serviços como, por exemplo, as consultas virtuais. O que mudou em 2023? Mudou o potencial dos aplicativos de Saúde, agora embarcados com GenAI (Inteligência Artificial baseada em LLMs, como ChatGPT, Bard, MedLM, etc.). O próximo triênio será seminal para as funcionalidades clínico-assistenciais digitais. ML (Aprendizado de Máquina) está desbloqueando a capacidade de agilizar a gestão de grandes volumes de dados. Estamos na exata etapa que definirá o futuro da saúde global. A Transformação Digital tem agora um “tutorial” claro: “digitalizar o front-end, automatizar o back-end e inteligenciar a decision-end”.
São tempos de acelerar a Saúde Digital para transpor as adversidades que todos os Sistemas de Saúde enfrentam. Prover serviços médicos sem digitalizar o que lhes cabe é legitimar o ‘desacesso’, ignorar as possibilidades de reduzir o erro médico e desconsiderar a penetração dos smartphones na população mundial (106%, temos mais telefonia móvel do que habitantes). Um exemplo de ampliação do alcance digital foi dado em janeiro/2024 pelo CMS (Centros de Serviços Medicare e Medicaid), agência norte-americana que conduz, gerencia e governa o financiamento de seguros de saúde para beneficiários do Medicare e Medicaid. Num movimento decisivo, o CMS publicou a regra final destinada a “aumentar significativamente o acesso à informação de saúde e agilizar o labiríntico processo de autorização prévia” das Seguradores de Saúde afiliadas ao CMS. O cerne da regra é um esforço concentrado para agilizar o oneroso processo de autorização prévia no país. Ele deverá ser simplificado, digitalizado e tornado mais eficiente, reduzindo os longos prazos de acesso a procedimentos vitais. A regra estabelece prazos específicos, sendo que as solicitações rápidas devem ter autorização em até 72 horas e as solicitações padrão em apenas 7 dias corridos (impõe um padrão nativo e digital de autorização). Da mesma forma, os pagadores devem fornecer as ‘razões explícitas’ para qualquer recusa, divulgado publicamente as métricas da decisão.
Além disso, o CMS estipulou que a interface de programação (API) para a Autorização Prévia deve ser em Health Level 7 Fast Healthcare Interoperability Resources (HL7® FHIR®). A regra revoluciona o processo de autorização prévia (um dos grandes responsáveis pela alta fragmentação do setor nos EUA), permitindo uma comunicação eletrônica e contínua entre prestadores e pagadores. Com isso, o CMS estabelece os requisitos para reforçar a “troca de dados em saúde”. A nova regra “entra no ar” em janeiro de 2027, sendo que os pagadores afetados serão obrigados a expandir a sua atual API de acesso ao paciente e aos provedores de serviço. A regra final também introduz uma nova medida de ‘Autorização Prévia Eletrônica’ para médicos e hospitais elegíveis, facilitando a comunicação com as APIs de ‘Autorização Prévia dos Pagadores’.
Certamente que as novas regras causaram um tumulto em todo setor de saúde da América, que funciona como os oligopólios: 4 seguradoras respondem por metade de todas as inscrições; 4 cadeias de varejo farmacêutico controlam 60% da distribuição de medicamentos; 3 gestores de benefícios farmacêuticos tratam de 80% dos pedidos de prescrição e 92% dos medicamentos são distribuídos por 3 grossistas (fonte: The Economist). Mas, o CMS optou (finalmente) por exercer seu poder discricionário de regulação, sem medo das implicações de curto prazo. A nova regulação impõe um processo digitalizado, simplificado e com protocolos claros de construção das APIs (FHIR), com impacto colossal para todos os intervenientes do setor.
“Quando um médico diz que um paciente precisa de um procedimento, é essencial que isso aconteça em tempo hábil. Demasiados americanos ficam no limbo, por até meses, à espera da aprovação da sua companhia de seguros”, diz Xavier Becerra, secretário de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHI). Várias organizações aplaudiram a finalização da regra, incluindo a American Hospital Association (AHA), mas várias irão à Justiça contra a regra. As novas diretrizes afetarão os contratos financiados pelo Governo junto as seguradoras, como o Medicare Advantage, o Medicaid, etc. Exemplo: um beneficiário do Medicare com 65 anos, que ganha US$ 50 mil por ano, paga anualmente US$ 1.450 em impostos para o Medicare. Este, paga a seguradora (privada), que por sua vez cobre o beneficiário em US$ 14 mil por ano. O paciente ainda desembolsa US$ 20 por consulta médica e US$ 20% do custo de qualquer medicamento prescrito. As regras podem variar por inúmeros fatores, mas o acesso às informações e autorizações passa agora a ser digital.
A nova regulação vai até certo ponto, afetando apenas as seguradoras que fazem negócios com programas federais. Não cobre, por exemplo, o seguro de cerca de 158 milhões de americanos que obtêm seus contratos através dos seus vínculos empregatícios (o tipo de cobertura mais comum nos EUA). O que se espera é que as mudanças do CMS sejam incorporadas a todas as demais instâncias reguladoras, como, por exemplo, o Departamento do Trabalho. O escopo do Governo Federal dos EUA é claro: ampliar a convergência regulatória voltada à Saúde Digital, pressionando e criando normatizações eletrônicas para redução da iniquidade sanitária (a nova regra também não abrange a ‘autorização prévia de medicamentos sujeitos a receita médica’, mas o CMS garante que ela será incorporada em meses).
Relatório do Banco Mundial publicado em 2023 (“Digital-in-Health: Unlocking the Value for Everyone”) já deixava bem claro que “melhorar a saúde está se tornando cada vez mais difícil, e apesar do imenso progresso, persistem desafios de longa data nos sistemas de saúde. Não são apenas os serviços de saúde que precisam se expandir, melhorar e mudar; as populações que querem proteger e melhorar sua saúde também precisam e estão mudando, principalmente em países de baixo e médio rendimento. Nesse sentido, a tecnologia digital e seus dados agregam imenso valor aos sistemas de saúde. Só os Registro Eletrônicos de Saúde conectados a telemedicina geram até 15% a mais em ganhos de eficiência e custeio”, explica o documento.
Da mesma forma, o Fórum Econômico Mundial (WEF), realizado em janeiro de 2024, nos deixou o documento “Transforming Healthcare: Navigating Digital Health with a Value-Driven Approach”, um incisivo relatório sobre o papel da saúde digital no mundo contemporâneo. Em suas 60 páginas, o documento expõe passo a passo o gravíssimo estado da saúde mundial, com o alvitre direto para que cada nação cumpra a sua parte, desenvolvendo mecanismos digitais capazes de reduzir a gigantesca pressão sobre os custos e a falta de mão de obra. “A digitalização do front-end significa trazer para a biosfera digital todos os elementos da jornada de saúde do paciente, oferecendo uma ampla gama de benefícios e soluções digitais para um real aumento de eficiência, principalmente na expansão do acesso à saúde”, explica o documento (veja abaixo imagem extraída do report/WEF).
Como enfrentar as restrições de recursos? Pergunta o report do WEF, sem deixar de dar respostas: “Tratando o paciente no momento certo, de forma a reduzir a carga geral sobre o sistema de saúde. As soluções digitais de saúde são em grande parte mais econômicas e mais oportunas quando comparadas com as abordagens tradicionais (triagem digital; telemonitoramento do paciente; digital front-door solutions; etc.)”. O relatório oferece cases de ferramentas que já existem nessa direção, como, por exemplo, a (1) Huma, uma plataforma global de atendimento digital ao paciente, permitindo o seu monitoramento remoto. Coleta dados dos pacientes no mundo real e os conecta às equipes clínicas, já utilizando GenAI na análise dos dados. Segundo dados da WEF, a solução trouxe redução superior a 30% nas taxas de readmissão, aliviando a carga de trabalho dos prestadores e resultando em 2 vezes o seu potencial de capacidade clínica (fonte: NHS); outro case é a norte-americana (2) K Health, que disponibiliza uma plataforma de IA para cuidados primários, com um verificador de sintomas e um ambiente digital de bate-papo (GenAI) que recomenda diagnósticos e tratamentos (revisados por médicos). Segundo o relatório da WEF, “70% das pessoas que iniciam uma conversa com o K Health AI realizam uma consulta médica por chat, sendo que os prestadores de serviços informam que 84,2% dos diagnósticos gerados foram bem avaliados (mais de 100 mil usuários estão inscritos na plataforma)”. Confira no estudo “Diagnostic Accuracy of Artificial Intelligence in Virtual Primary Care”, publicado em setembro de 2023 na Mayo Clinical Proceedings; outro exemplo citado pelo WEF é a (3) Osana, uma plataforma omnicanal para pacientes, com infraestrutura digital de ‘ponta a ponta’ para pagadores, prestadores e farmácias (já conta com 7 milhões de usuários).
O WEF apresenta outras perguntas críticas, respondendo com soluções de Digital Health: Como enfrentar a carga crescente de doenças crônicas? “Capacitando o paciente a monitorar sua saúde e autogerenciar melhor suas condições. Ao permitir mais teleatendimento ambulatorial em casa, o atendimento hospitalar fica mais dedicado a casos emergenciais”. O WEF dá como exemplo a solução mDoc.
Como atuar nas desigualdades de acesso a saúde? Utilizando mais a conectividade, explica o WEF no documento. “É preciso estender os serviços de saúde para áreas remotas e carentes, melhorando o acesso e a equidade sanitária. Dar aos profissionais de saúde acesso remoto, aprimorando a sua prática e permitindo que eles recebam informações clínicas em tempo real (telehealth; ferramentas portáteis de diagnóstico; plataformas digitais de saúde; etc.). Da mesma forma, o WEF apresenta dois exemplos que reforçam as possibilidades de reduzir a desigualdade com saúde digital: (1) a fundação indiana WISH (Wadhwani Initiative for Sustainable Healthcare), um programa de Saúde Digital que aproveita a inovação e a tecnologia para reduzir as lacunas no primary care; e o (2) Reach52, uma ‘ferramenta end-to-end’ que apoia o acesso à saúde das comunidades carentes.
Na Europa, o senso de urgência para digitalizar o front-end, automatizar o back-end e inteligenciar o decision-end está forçando as lideranças a agirem com mais celeridade e reduzir o comodismo inercial. Uma metáfora explica: a “manada de gnus” que precisa atravessar o rio em busca de novas pastagens, fica ribeirando as margens por medo dos predadores. Num dado momento, inspirados pela fome e pelo instinto de sobrevivência, se lançam aos milhares, mesmo pressentindo que alguns ficarão pelo caminho. A pandemia mostrou as 27 nações da União Europeia que ficar muito tempo do lado errado do rio só piora o sistema. Nesse sentido, a Agência Europeia de Execução para Saúde e o Digital (HaDEA) se lançou em 2023 à subvenção de 44 projetos (EU4Health) que ambicionam ampliar rapidamente a infraestrutura de saúde digital. Venceu a desconfiança dos últimos anos e passou a facilitar uma rajada de investimentos orientados a estabelecer definitivamente uma plataforma digital de dados segura, eficiente e interoperável: “precisamos acelerar para permitir que os cidadãos se beneficiem de serviços de saúde onde quer que estejam e sempre que deles necessitem”. Dos 44 projetos, ‘23 são subvenções para acelerar novos serviços de saúde digital transfronteiriços’ no âmbito do MyHealth@EU. A plataforma inclui serviços como prescrição eletrônica, resumos de dados clinicos, imagens médicas, resultados laboratoriais e outros documentos. Outras ‘21 subvenções facilitarão a utilização secundária de dados nos países da EU’ para fins de pesquisa, inovação, medicina personalizada e elaboração de políticas públicas de compartilhamento de dados em saúde.
A ‘maratona’ de Digital Health passou a ser um ‘sprint de 100 metros’ pela complicação macroeconômica mundial, pelas curvas demográficas que levam bilhões de indivíduos aos Sistemas de Saúde, mas também pelas boas perspectivas das GenAIs na Saúde. O estudo publicado no The Lancet em janeiro de 2024, “Large language models: a new chapter in digital health”, reforçou as expectativas globais de que as LLMs podem promover grandes transformações na Saúde nesta primeira metade do século. “Tomados em conjunto, os LLMs provavelmente afetarão a saúde dos pacientes em 2024, fornecendo respostas precisas a perguntas médicas, auxiliando o diagnóstico e o planejamento do tratamento, sem falar na automatização das tarefas administrativas”, conclui o documento. A relevância dessa perspectiva só cresce com o crescimento da oferta de M-LLMs – Multimodal Large Language Models, plataformas de IA capazes de processar e interpretar vários modais de acesso aos dados, como texto, imagens, áudio e vídeo, tudo simultaneamente.
O termo “ecótono” refere-se à fronteira divisória entre dois distintos ecossistemas biológicos. Trata-se de uma região de contato entre dois ou mais biomas fronteiriços. Um capinzal e uma floresta, por exemplo, estão separados por um espaço (borda, edge) que contêm características dos dois biomas, mas não é nenhum deles (ainda). São áreas de transição. O “ecótono da saúde digital” é uma fronteira espessa, que separa um bioma atrasado, insuficiente e degradado, de outro que rapidamente ascende a níveis superiores de acesso, produtividade clínico-assistencial e solução de problemas operacionais. Muitas nações e Sistemas de Saúde continuam aspirando ser floresta, mas se movem vagarosamente, atados ao incrementalismo e sem medo de ficar do lado errado do rio. Parecem vocacionados a ecótonos: flertam com a inovação aqui e ali, mas se mantem ocupados e centrados no capim-alto. Debatem sobre saúde digital, mas o domínio da floresta se mantém distante deles. Para atingir a zona florestal é preciso de lideranças especiais. Para o senso comum, não precisamos de grandes líderes, só dos comuns. Para chegar à floresta, não precisamos dos conformistas, só de alguma heterodoxia e de um exército de inconformados.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)