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‘Triagem Digital’: fila única de espera é obsolescência hospitalar

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eTriage ganha maturidade na Covid-19

A “Caixa de Pandora” é o mito grego que revela o surgimento dos males no mundo. Segundo a mitologia, Pandora foi um instrumento da ira de Zeus contra Prometeu, que havia roubado o fogo divino para dar aos homens. Como punição, Zeus enviou a bela Pandora de presente ao irmão de Prometeu, Epimeteu, que aceitou o presente e casou-se com Pandora. Mas ela não veio só, sendo enviada junto com uma caixa misteriosa que não deveria ser aberta em hipótese alguma. Certo dia, porém, cedendo à curiosidade, Pandora abriu a caixa, liberando todos os males do mundo. Quando se deu conta do erro, fechou-a imediatamente, embora já fosse tarde. A Covid-19 abriu a ‘caixa’ dos Sistemas de Saúde, revelando falências, insuficiências e equívocos, que muitas vezes ficam submersos aparecendo de repente para mostrar o quanto a civilização ainda é deficiente para “equacionar” a saudabilidade dos seres humanos.

Um exemplo do conteúdo da ‘caixa’, foi revelado no estudo “Association between delays to patient admission from the emergency department and all-cause 30-day mortality”, publicado em 2022 no BMJ, causando constrangimento nas lides hospitalares do Ocidente. O estudo descobriu que longos tempos de espera nas emergências levam a mortes’. “Quando os tempos de espera ficam entre 6 e 8 horas, a taxa de mortalidade é 8% maior do que o esperado, enquanto na espera entre 8 e 12 horas a taxa de mortalidade é 10% maior”, explicou o documento. A pesquisa objetivou avaliar e quantificar o aumento do risco de morte resultante de atrasos na admissão de pacientes nos serviços de emergência, tendo sido usados dados do Hospital Episode Statistics e do Office of National Statistics England. A surpresa só poderia vir da mídia, visto que qualquer profissional de saúde que milita diariamente em unidades de urgência e emergência tem essa percepção na pele. Nos EUA, a grande mídia foi incisiva: "Salas de emergência estão em seu ponto de ruptura, com pacientes esperando por dias", manchete da Fortune (jan/2022); “Ambientes emergenciais (ERs) estão sobrecarregados e a ômicron continua a inundá-los com pacientes", explicou o NPR (jan/2022); “Pacientes não vacinados empurram os sistemas hospitalares ao limite”, na Bloomberg (dez/2021); ou “Salas de emergência lotadas custam vidas”, do USNews. Na mesma direção, mas apontando um alvo, a Neewswek de março/2022 deu seta na direção correta: “It's Time for Tech Creators to Take on the Hospital Crisis”, convocando a indústria de tecnologia a salvar as emergências hospitalares.

Desconsideração e desrespeito ao paciente que fica horas em longas filas de espera não é mais manchete no Brasil. É verdade que a Covid-19 sufocou o atendimento emergencial, principalmente no setor público, mas um rastreamento do pronto-atendimento nacional (incluindo Saúde Suplementar) não causa nenhum espanto e, com certeza, causa óbitos. O relatórioCongestão e Superlotação dos Serviços Hospitalares de Urgência”, publicado pelo Ministério da Saúde em 2020, não se esquiva do problema: “A congestão ou saturação do SHU (serviços hospitalares de urgência), mesmo que não acompanhada de superlotação, dificulta o acesso do paciente que busca atendimento de urgência, à medida que alargam os tempos de espera para primeira avaliação médica e para a formulação diagnóstica e, consequentemente, o início do tratamento, constituindo o chamado “bloqueio de acesso”, que em muitas ocasiões gera desistência do atendimento pelo paciente”. Uma das Opções (2) do relatório para evitar o “bloqueio de acesso” ao SHU é justamente o uso da tecnologia digital: “A utilização de tecnologia da informação e comunicação à distância, entre médicos, entre o médico e enfermeiros, entre o médico e o paciente, e entre o médico e a equipe para diversas ações de saúde, como consultas e laudos de exame deve ser ampliada”. A pandemia obviamente ressignificou o problema da espera nas Unidades de Urgência, como noticiado em janeiro/2022 pelo jornal Folha de São Paulo: “Com Covid e gripe, espera em prontos-socorros chega a 6 horas em São Paulo”.

Certamente que o problema não existe só no Brasil, é universal. Mas a diferença talvez esteja na escala e na forma de resolvê-lo. O nó continua sendo uma demanda maior do que a oferta, ou seja, “há mais população em busca de emergência hospitalar do que acesso a ela”. Ninguém vai resolver esse desnível no curto prazo, mas existem opções para tornar a vida de ambos os lados (paciente e sistema) menos sofrível. Uma delas chama-se triagem. Não a “triagem por ordem de chegada”, um legado do Utilitarismo do século XVIII, impróprio ao século XXI. Mas a triagem digital (eTriage), que combina ambiente computacional, inteligência artificial e bom senso profissional. No Brasil, em termos gerais (variando pouco em cada Estado), o paciente se dirige diretamente a Unidade de Pronto Atendimento hospitalar mais próxima. A nomenclatura “triagem” muda em função de vários fatores, principalmente se o atendimento é público ou privado, mas o formato é parecido: quando lá chega, espera bravamente por uma triagem hospitalar, que é um misto de (1) triagem clínica (avaliação precária do seu estado de saúde); (2) triagem ambulatorial (profissional de saúde avalia a complexidade, baseado nas explicações do paciente ou de seus familiares) e (3) triagem temporal (ordem de chegada). Na sequência, recebe uma senha (papel), aguardando por alguns minutos ou por alguns dias. Em certas Capitais, o agendamento pode ser telefônico ou mesmo pelo celular, mas a triagem é presencial, frágil e na maioria das vezes ineficaz.

O dilema de “como considerar a triagem” é também um problema mundial. Na pandemia, todas as unidades de emergência foram obrigadas a raciocinar rapidamente em termos de separar, selecionar, categorizar e priorizar o paciente, ou seja, triar. Desde os tempos de Napoleão a triagem já era empregada com diferentes nomenclaturas (a etimologia da palavra significa “quebrar em três pedaços”), sendo que o sistema formal de “triar pacientes” foi adotado por militares franceses em 1801, mostrando que sua utilização reduzia drasticamente a mortalidade no campo de batalha. Assim como nas guerras, categorizar pacientes em vários graus de gravidade ainda hoje mostra-se a única solução capaz de regrar (ética) a prioridade no atendimento clínico-emergencial.

A triagem digital, ou eTriage, parte do princípio simples de que o paciente é capaz de manifestar seus desconfortos muito antes de um quadro de gravidade, ou seja, ele pode ser “educado e treinado” a apoiar o pré-diagnóstico com ajuda da telemedicina, dos questionários eletrônicos, de intelligent-contact-center (robótica), etc. O estudo “Agreement and validity of electronic patient self-triage (eTriage) with nurse triage in two UK emergency departments: a retrospective study”, publicado de fevereiro de 2022, mostrou essa linha de ação. Ele analisou 43.788 pacientes adultos, separados em dois grupos: um que utilizou o sistema convencional de triagem por enfermagem (empregando o protocolo Manchester), e outro que utilizou a eTriage. A especificidade para prever pacientes de baixo risco foi de 88,5% para eTriage e 80,6% para a enfermagem. A sensibilidade para previsão de resultados de alta acuidade foi de 88,5% para eTriage e 53,8% para enfermagem convencional. O nível de subtriagem quando realizado por eTriage (em comparação com a triagem por enfermagem) foi de 10,1% e a sobretriagem foi de 59,2%. O eTriage teve uma sensibilidade maior para alta acuidade e demonstrou especificidade semelhante a enfermagem na baixa acuidade.

No Reino Unido, por exemplo, há décadas o aumento do tempo de espera emergencial é controverso. Segundo os padrões britânicos, em 95% dos casos as pessoas que visitam um pronto-socorro devem ser “admitidas, transferidas ou liberadas em até 4 horas”. Todavia, essas metas não são cumpridas desde 2015. Na pandemia, a pressão só aumentou: em dezembro de 2021, os tempos de espera do A&E no Reino Unido atingiram o maior valor já registrado, com mais de 13 mil pessoas esperando mais de 12 horas para serem admitidas. O modelo mais utilizado mundialmente em triagem emergencial é o protocolo Manchester (MTS), criado na cidade de Manchester (Inglaterra), em 1997, que classifica o risco por meio de um sistema de coloração. A partir de uma avaliação inicial, o médico (ou enfermagem) consegue posicionar a gravidade da situação e inserir no paciente uma pulseira com a cor indicando a gravidade da situação. Ele é automatizado em EHRs, com aplicações já utilizando inteligência artificial para suporte a assertividade (a máquina adiciona níveis de comparação com Data Lakes, que contêm milhares de dados-triados, incluindo seus respectivos desfechos).

A eConsult, o maior provedor de triagem digital do NHS, está presente em mais de 3.300 práticas, realizando 1,2 milhão de consultas/mês. O sistema coleta pré-informação para médicos antes de qualquer consulta ou tratamento, sendo de fácil uso dos pacientes.  O paciente entra numa plataforma-web e responde a uma série de perguntas sobre suas condições (dor nas costas, sintomas de infecção urinária, algum tipo de depressão, etc.), com a ferramenta fazendo praticamente todas as perguntas que seriam feitas ao paciente numa consulta presencial ou virtual, mas que são respondidas antes dela ocorrer, ou seja, prepara o médico-atendente para só fazer as perguntas mais assertivas e orientativas, já que as primeiras indagações já foram feitas. “Em cerca de 70-80% dos casos, você pode fechar o caso sem precisar trazer o paciente para o hospital, o que é ótimo para o paciente, que poupa uma viagem, sendo também ótimo para a instituição, que economiza tempo e prioriza os pacientes com maior precisão. Ou seja, estamos trazendo para o hospital quem realmente precisa estar nele, não todos”, explica Murray Ellender, médico e diretor do Hurley Group (rede de atendimento clínico filiada a NHS desde 1969) e CEO da eConsult. Esse será um dos caminhos da telemedicina aplicada: criar conectores (perguntas antecipadas) que emulem e se antecipem a consulta (presencial ou virtual) e tragam conforto ao paciente. Desde o início da pandemia, oito sites de eTriage auxiliam as emergências do NHS, que passaram a utilizar ‘digital check-in’ e ‘automated triage’. O objetivo é facilitar a separação dos casos de maior ou menor acuidade. Vale salientar que mesmo no Reino Unido, com seu sofisticado sistema de primary care, a maioria das unidades de atendimento de urgência ainda funciona por “ordem de chagada”. Embora a implantação das soluções de triagem digital esteja a todo vapor, o cotidiano da ‘atenção básica em escala’ ainda é de triagem temporal, sendo que muitos médicos consideram as experiências de eTriage “desconfortáveis para o paciente e inúteis para o sistema”. Nada de novo, tudo em transformação e a “caravana segue”.

Assim, sistemas de triagem que não coletem eletronicamente informações sobre o paciente (antecipadamente) são uteis circunstancialmente, mas inúteis para a boa efetividade da jornada do paciente. Sem tecnologia digital a função de priorizar os pacientes que mais precisam de ajuda rápida é uma questão de proficiência do atendente e sorte do paciente. Sem as ferramentas de Digital Health é pouco provável que a entidade obtenha resultados consistentes na triagem. A triagem digital pode coletar informações de forma assíncrona, no tempo do paciente e não do médico. Perguntas formatadas em modelo user-friendly são feitas aos pacientes, remotamente, antes de seu contato com a unidade de emergência, de forma a reunir dados que “dirijam” o cuidado clínico. Mas basta implantar uma aplicação de digital triage? Não. O ambulatório é uma área que passará por inúmeras transformações, sejam digitais, conceituais e sociais. Hoje, ambulatório é “lugar de espera”, nos próximos anos será “lugar de coleta de dados”, não importando se o paciente está em casa, no trabalho ou na rua. O que importa é que os dados já estejam sendo coletados, analisados, algoritmizados e triados para que o paciente quando na frente do médico (presencialmente ou virtualmente) não tenha que ouvir perguntas como: “Então, o que você tem? O que está sentindo? Quando começou a sentir? Quais medicamentos você já ingere? Quando fez seu último exame? Tem antecedentes na família?...”. O NHS, por exemplo, estabeleceu uma expectativa de que até um terço das consultas presenciais realizadas em atendimento ambulatorial serão digitais até 2024, economizando só na Inglaterra cerca de US$ 1,3 bilhão por ano, além de extinguir 30 milhões de visitas dos pacientes aos hospitais.

O Canadá utiliza o Canadian Triage and Acuity Scale (CTAS), um sistema semelhante ao Manchester onde a enfermagem ouve a história do paciente, verifica seus sinais vitais e eventualmente solicita um exame. Pós avaliação, ela atribui uma pontuação de acuidade, onde o mais urgente é 1 e o menos é 5. Os profissionais de enfermagem são treinados para realizar essa avaliação, sendo capazes de identificar um paciente em crise em poucos minutos. Assim, a triagem não funciona por ordem de chegada; em vez disso, os pacientes são priorizados de acordo com o código CTAS que recebem. Se um paciente entrar com falta de ar (CTAS 2), ele será tratado antes do paciente CTAS 4 (por exemplo, uma corte sem sangramento). Essa zona de avaliação rápida (fast track) registra, monitora e incrementa uma base de dados que recondiciona ou redimensiona o setor em função do algoritmo que controla o CTAS. A perspectiva é que o CTAS possa iniciar a avaliação remotamente, quando pacientes responderão a um questionário (eTriage) antes mesmo de sair de casa em direção ao hospital. O estudo “E-Triage Systems for COVID-19 Outbreak: Review and Recommendations”, publicado em 2021, avalia e recomenda o uso dos recursos remotos para aliviar essas emergências.

A raiz da solução caminha cada vez mais para o conceito de “digital-first”. Ou seja, a triagem começa no smartphone do paciente e também termina nele (pós-triagem). Sem isso, não há solução e qualquer hospital, operadora de saúde ou unidade de atendimento (público ou privado) caminha em direção a obsolescência. “Mas o paciente não quer ser atendido por máquinas, robôs, boots ou atendimento automatizado”, dizem alguns. É verdade, mas terá que aprender, sendo convencido que sem digital health será cada vez mais difícil obter tempos de espera menores. Ele aprendeu a usar o PIX, aprenderá a usar o eTriage.

Mas, enfim, o que é Digital Health? Resposta: “É automação dirigida ao paciente, orientada por dados e voltada a criar valor superior”. Estratificando o conceito: (1) Automação, é a capacidade de automatizar tarefas, processos e funções cruzando silos de informações para se obter um melhor resultado para o paciente, ou àquele que o serve; (2) Dirigida ao Paciente, significa prover iniciativas digitais voltadas a resolver os problemas das pessoas (e não do médico, ou da instituição, ou da mantenedora), utilizando maneiras inovadoras, simplificadas e consistentes. Se não resolver a “demanda do paciente”, descarte, pode ser tudo, menos Digital Health; (3) Orientada por Dados, é onde mora o desafio: não é a tecnologia em si que torna algo digital, mas o uso de dados. Tecnologia é a ferramenta que possibilita extrair “virtude” dos dados, atribuindo a eles valor superior para substanciar a automação (data analytics); (4) Criar Valor Superior, não é ‘automatizar o passado’, ou substituir o papel pelo digital, ou não considerar superar a experiência e a expectativa do paciente. Automatizar um processo é digitalização e não transformação digital. Substituir um formulário em papel por assistência online é apenas ‘mecanizar o fluxo’. Para ser “digital health” precisa imbricar e sobrepor inteligência a toda experiência do paciente. ‘Amontoar computação’ na jornada do paciente, sem adicionar interpretação, percepção e condições facilitadoras, pode ser até mais trabalhoso, dispendioso e inútil do que as longas filas de espera.

Triagem em saúde não é transformar uma fila em cinco filas, não é agendar uma consulta na web e deixar o paciente por dias sem qualquer classificação. Triagem digital é um serviço de engenharia hospitalar de ampla abordagem, que insere o paciente dentro das camadas assistenciais do hospital, atuando transversamente no seu fluxo de dados clínicos e administrativos. Um sistema eTriage permite a coleta eficaz de informações estruturadas no início do processo, garantindo que tanto o clínico como o paciente tirem o máximo proveito de seus encontros. A telemedicina ou digital health não se propõem a reduzir os encontros, pelo contrário, sua missão é ampliá-los, superar suas intransigências e deixá-los alçar voo.

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)