Uma rápida observação nos consultórios já é suficiente para perceber que muita coisa mudou nos últimos anos. Da ligação para “encaixar” horários na agenda disputado do médico ao talão de notas para prescrever receitas, exames e procedimentos, diversas tarefas migraram para o ambiente digital. Hoje, é possível marcar consultas e enviar exames diretamente em um app pelo smartphone, tão simples quanto utilizar os aplicativos de mensagem. A tecnologia está revolucionando a medicina, mas ela sozinha não é a responsável pela transformação digital necessária no setor.
Sim, parece uma afirmação contraditória diante de tamanha evolução entre as ferramentas digitais no dia a dia de consultórios e hospitais. Mesmo pacientes que possuem pouca familiaridade com estes recursos precisam lidar com alguma solução do tipo em sua jornada na área de saúde. Itens como prontuário eletrônico, sites e computação em nuvem se tornaram essenciais para a realização do trabalho médico e, consequentemente, um melhor tratamento a todas as pessoas. Consultórios que não utilizam estes serviços correm sério risco de extinção nos próximos anos.
Segundo uma projeção da Deloitte, o avanço cada vez maior do fluxo de dados no dia a dia médico e sua combinação com outras fontes relevantes vai mudar o setor por completo até 2040, “criando um quadro multifacetado e altamente personalizado do bem-estar de todos os consumidores”. Em suma: as ferramentas capazes de cruzar, processar e trabalhar diferentes informações para sugerir melhores diagnósticos e tratamentos estarão em alta nos próximos anos para melhorar a rotina médica como um todo.
Por que, então, digo que a tecnologia não é a única responsável pela transformação digital na medicina?
A resposta é mais simples do que aparenta: porque os cuidados médicos são planejados e executados por – e para – pessoas. As soluções digitais surgem para facilitar esse dia a dia, otimizando processos e automatizando tarefas burocráticos justamente para que o profissional de saúde possa dedicar mais tempo e esforço às consultas. Toda tecnologia, portanto, é apenas um meio para se chegar ao fim, que é a maior qualidade de vida das pessoas que buscam se consultar com diversos especialistas.
É função dos profissionais de saúde encontrarem esse equilíbrio, ou seja, identificar as tecnologias que irão trazer, de fato, benefícios a seus pacientes. Não adianta apenas ter a última inovação digital se os usuários não souberem como utilizar e o consultório não estiver apto a isso. A transformação digital na medicina começa pelo ser humano.
Transformação digital depende de uma cultura orientada à inovação
Um dos principais erros de médicos que desejam digitalizar seus consultórios é a crença de que basta contratar as melhores soluções disponíveis para isso. Normalmente investem uma quantidade significativa de dinheiro para, no fim, extrair pouco (ou até nada) dessas ferramentas no dia a dia.
Ter os melhores recursos digitais é uma estratégia importante, sem dúvida, porém é fundamental saber o que fazer com eles. Isso exige não só um conhecimento técnico por parte dos profissionais, como principalmente uma maior atenção sobre a própria rotina de seu expediente. Afinal, para saber quais soluções são mais eficientes, é necessário ter em mente quais são as dores e os problemas que precisam ser resolvidos.
Em suma: é essencial desenvolver uma cultura de inovação em seu consultório. O que isso significa? O médico precisa criar processos que facilitam a tomada de decisão nas consultas, permitem o acesso a diferentes fontes de informações, estimulam maior interação dos pacientes em troca de feedbacks sobre o atendimento e, claro, garantem um maior cuidado e carinho com todas as pessoas. A partir daí, ele consegue identificar o que pode ser automatizado por ferramentas digitais e quais funções espera ter à disposição.
É necessário democratizar (ainda mais) a tecnologia médica
Como se vê, a transformação digital da saúde no Brasil começa sempre na cabeça de algum profissional envolvido antes mesmo do que o investimento em si. Quando se tem uma estratégia clara daquilo que é necessário resolver, fica mais fácil orientar os recursos financeiros para contratar as soluções que mais fazem sentido ao dia a dia médico.
Até porque há outros desafios que impedem o desenvolvimento de uma cultura digital dentro das clínicas e consultórios. O primeiro deles é a própria reticência dos profissionais, sobretudo os mais antigos e acostumados com a velha fórmula de prognósticos na base de achismo e suposições. Acostumados desde as salas da universidade há evitar o apoio de tecnologias da informação foi difícil quebrar esse paradigma.
O segundo ponto é a dificuldade que muitos profissionais de saúde ainda têm em acessar as melhores ferramentas em suas rotinas. No Brasil, por exemplo, a tecnologia 5G chegou apenas recentemente às principais capitais estaduais e deve estar disponível em todo o território nacional apenas em 2029. É difícil estimular uma cultura de inovação quando se há barreiras tecnológicas em curso.
Cenário começa a mudar no Brasil
Felizmente, este cenário está em profunda transformação na medicina brasileira. Soluções como o prontuário eletrônico já são considerados itens de sobrevivência nos consultórios, uma vez que é a melhor plataforma para se trabalhar com dados e criação de relatórios. A pandemia de covid-19 também foi um catalisador importante, forçando uma digitalização em meio às restrições provocadas pelo distanciamento social.
Hoje, não importa mais a velocidade com que o consultório adota as ferramentas – até porque cedo ou tarde todos os profissionais do setor precisarão estar atentos aos movimentos tecnológicos do mercado. A verdadeira mudança só acontece quando ela é feita de corpo e alma, ou melhor, com tecnologia e cultura.
* Tiago Delgado é sócio-fundador da Medicina Direta, empresa especializada em tecnologia na área de saúde