“No dia seguinte ninguém morreu. Assim, inexplicavelmente, a partir de 1º de janeiro de um ano qualquer, num país qualquer, ninguém morreu durante sete meses. Essa ausência de morte nesse país (curiosamente, apenas nele que a morte se ausenta) causa convulsões políticas, sociais, econômicas, religiosas e filosóficas. É a própria morte que envia uma Carta assinando com “m” minúsculo por ser ela tão somente a ‘pequena morte quotidiana’, relativa e particular às pessoas daquela nação inominada, e não a Morte absoluta e universal. Seu propósito com a trégua de sete meses “foi oferecer a esses seres humanos que tanto me detestam uma pequena amostra do que seria para eles viver eternamente”.
Esse é um trecho da obra “As intermitências da morte” (2005), de José Saramago, uma fábula inventiva com um enredo impregnado de ironia sobre a possibilidade de um mundo sem-morte. Mordaz às instituições sociais, políticas e religiosas do mundo contemporâneo, cada um pode interpretar o texto como quiser. Saramago navega por um oceano de probabilidades, sem esquecer, por exemplo, do arco que cobre a função dos hospitais nesse mundo sem-morte. Se o paciente soubesse ser imortal, talvez a única coisa que lhe sobrasse fazer fosse definhar fisicamente para todo o sempre, se empanturrar de analgesia e esperar pelo fim da eternidade...
Mas, esperar é o que já fazemos hoje, mesmo fora do contexto saramaguiano e com a morte “vivinha” por aqui. Pelo menos duas certezas o ser humano tem no século XXI: (1) ele vai morrer; e (2) participar das filas de espera dos Sistemas de Saúde. Como o crescimento das curvas demográficas não dá trégua, o mundo tornou-se uma longa fila de espera por consultas, exames, procedimentos cirúrgicos, terapias, atendimento com especialistas, tratamentos e tudo o mais que sair dessa caixa-de-pandora chamada Saúde.
Em novembro de 2023, o Secretário de Saúde do Reino Unido, Wes Streeting, declarou: “comparando com 2022, mais de um milhão de pacientes do NHS England aguardam por tratamento planejado”. A convulsão mediática foi imediata. Sua afirmação foi uma das primeiras a confrontar as listas de espera depois da Covid-19, que sempre foi um parâmetro para justificar as deficiências do NHS e, sobretudo, o crescimento das esperas.
As filas de espera por serviços de saúde deixaram de ser um problema setorial, ou regional, ou mesmo circunstancial. O bioma sanitário está agora em ‘modo-espera’, ou seja, quase todos os sistemas ocidentais de saúde (públicos ou privados) estão vinculados a colossais filas de espera. Os pacientes nem se rebelam mais; parece que uma ‘bruma conformista’ desceu sobre todos depois da pandemia, tornando a “espera” um pedágio inevitável para os cuidados de saúde. A espera está no centro das experiências e das práticas de saúde neste século.
Até mesmo a expressão “paciente” impõe, pelo menos no nível etimológico, um grau de paciência, resistência, sofrimento e resiliência dos usuários com os serviços médicos. As filas de espera, como parte essencial dos cuidados de saúde, raramente estiveram conectadas a debates mais amplos, com análises sobre percepções, experiências e organização social. A espera quase sempre é considerada um evento contingencial, fortuito. Na realidade, o problema só cresceu ao longo das últimas três décadas. Espera-se cada vez mais porque o número de pacientes é cada vez maior. Todos os sistemas de saúde (públicos ou privados) foram dragados nos últimos 30 anos pela delonga assistencial. O mantra público e universal de fornecer serviços médicos gratuitos a todos os cidadãos foi generoso e altruísta, mas logo foi sendo desconstruído pelas lacunas entre despesas e alocação de recursos (impostos). Esse desequilíbrio foi se manifestando nas listas de espera, sejam hospitalares, ambulatoriais, cirúrgicas, laboratoriais, farmacêuticas, etc. Os “leitos remunerados” do setor privado foram apaziguadores, mas por pouco tempo. Logo entraram também nas listas.
Assim, a espera não é mais um aspecto marginal da doença, tornando-se um componente próprio dela. Nos acostumamos com a doença, mais ainda com a espera. No centro do contexto, está a crescente desigualdade social: alguns esperam mais que outros, há os que esperam muito mais e há até aqueles que nunca serão atendidos. Por que as listas de espera crescem? Superlotação (alta demanda); Recursos Limitados (leitos, profissionais de saúde, equipamentos, etc.); Priorização (gestores elegem em função da urgência, criticidade, gravidade, etc.); Financiamento (na iniciativa privada, as esperas são proporcionais ao capital, ou aos modelos de acesso embutidos em cada contrato); Disponibilidade de Especialistas (um problema que só cresce); Procedimentos Eletivos; Demandas Logísticas; etc. Quais são os riscos de longas filas de espera? (1) Deterioração da saúde; (2) Aumento dos custos; (3) Redução da qualidade de vida; (4) Frustração do paciente; (5) Ansiedade e geração de novas morbidades correlacionadas às esperas; (6) Perda de oportunidade para prevenção; (7) Aumento de solicitações emergenciais; (8) Deterioração familiar; (9) Perda de eficiência terapêutica; (10) Desequilíbrio sistêmico; etc.
O estudo “Health at a Glance 2023 - OECD Indicators” oferece dados sobre os longos tempos de espera para cirurgias eletivas em duas dezenas de países, um problema que se agrava anualmente. Em 2022, o tempo médio de espera de um paciente para uma cirurgia de catarata era de 149 dias no Chile; 278 dias na Costa Rica; 148 dias na Irlanda; 106 dias em Portugal; 240 dias na Eslovênia; 132 dias na Noruega; 113 dias na Nova Zelândia; sendo que na Polônia pode ser superior a 350 dias. Uma prostatectomia demora em média 116 dias na Suécia; 131 na Espanha e 125 na Eslovênia. Uma substituição de joelho, em 2022, sentenciava um paciente a esperar em média 800 dias no Chile; 322 na Hungria; 337 em Portugal; 185 na Suécia e 201 na Nova Zelândia.
A agência norte-americana World Population Review (organização independente sem afiliações políticas), também publicou dados sobre os tempos de espera na saúde em 2023. O Canadá, por exemplo, tem 33% dos pacientes esperando “mais de um dia para consultar um médico” e 61% deles aguardando em média “mais de um mês para tratamento especializado”. Na Austrália, 39% dos pacientes esperam em média mais de um mês só para consultar um especialista, sendo que em duas de suas principais cidades os problemas são graves: em Victoria (6,5 milhões de habitantes), um paciente esperava em 2022 mais de 900 dias por uma consulta neurológica de urgência; e em Queensland (5,2 milhões de habitantes), o paciente espera mais de 150 dias por uma consulta urgente de gastroenterologia ou reumatologia (em ambos os casos a meta governamental é de 30 dias).
Nos EUA, três quartos dos estados têm listas de espera para programas de atendimento do Medicaid. O Canadá, um dos mais sólidos e organizados sistemas de saúde do ocidente, não fica atrás em nenhuma pesquisa desse gênero. Esperar por tratamento tornou-se uma característica definidora dos cuidados canadenses de saúde. O Fraser Institute (“Waiting Your Turn”) pesquisou por quase três décadas com médicos de 12 especialidades, em 10 de suas províncias. A edição de 2023 mostra que os pacientes esperam em média 27,7 semanas entre o “encaminhamento a um clínico geral e o recebimento do tratamento” (mais do que as 27,4 semanas de 2022), sendo o índice deste ano o maior tempo de espera já registrado desde que a pesquisa foi iniciada, em 1993 (quando o tempo de espera era de 9,3 semanas).
Nenhum país escapa do crescimento das listas. Na Espanha, o problema flerta com a calamidade. Segundo dados do Ministério da Saúde, noticiados em novembro/2023, a comunidade de Andaluzia (50 províncias e 8,1 milhões de habitantes) tinha 1,045 milhão de pacientes em lista de espera, dos quais 841 mil aguardando consulta com especialistas e 203 mil esperando por agendamento cirúrgico. Não é diferente na Colômbia: em Medellín (2,5 milhões de habitantes) havia em novembro deste ano 106% de saturação em sua rede geral de emergência. No Chile, a lista de espera para consultas de especialidades chegou em novembro a 2,35 milhões, com tempo médio de espera de 370 dias.
Não é diferente no Brasil, que mesmo com todo esforço do governo federal em seu “Programa Nacional de Redução de Filas” encontra inúmeras dificuldades para conter o crescimento das esperas. A alta fragmentação do Sistema Nacional de Saúde impede a divulgação de dados atualizados sobre as filas, embora os Estados e Municípios conheçam bem os problemas. Da mesma forma, os dados do Ministério da Saúde são confusos, difusos e pouco atualizados. Algumas informações emergem por meio da mídia de cada Estado ou das cidades mais urbanizadas. Segundo relatório divulgado em maio/2023 pelo próprio Ministério, mais de 1 milhão de cirurgias eletivas estavam na fila do SUS em todo o Brasil. Só a cirurgia de catarata possuía nesse mesmo mês cerca de 167 mil pacientes aguardando o procedimento, representando aproximadamente 15% de todas as cirurgias na fila (a prefeitura de Campo Grande, por exemplo, informou que a fila de espera pode demorar anos, tendo em outubro/2023 cerca de 12 mil pessoas aguardando por consultas, exames e cirurgias em diversas especialidades).
Não precisa ser um estatístico ou usar qualquer inteligência artificial para identificar que milhões de pessoas no país estão em listas de espera, seja para consultas, tratamentos, procedimentos cirúrgicos, terapias, ou qualquer outra demanda que envolva cuidados eletivos. Basta verificar o “Mapa de Acesso à Saúde em São Paulo”, publicado em 2023 pelo SindHosp (Sindicato de Hospitais, Clínicas, Laboratórios e Estabelecimentos de Saúde do Estado de São Paulo), que mostra o principal problema apontado pela população pesquisada: Tempo de Espera (54%).
Mas talvez seja no Reino Unido onde os problemas são mais claros, não porque sejam piores, mas pela maior riqueza de dados que o país se esmera em apresentar. Nenhuma nação armazena e divulga mais dados (positivos e negativos) sobre seu sistema de Saúde do que a Grã-Bretanha. A pressão sobre o NHS é contínua, apesar dos esforços para conter o crescimento das listas. O NHS England publicou em dezembro/2023 o número de pacientes individuais em lista de espera: 6,5 milhões. A Health Foundation (instituição britânica filantrópica de pesquisa) estima que a lista de espera do NHS atingirá um pico de 8 milhões no verão de 2024. Charles Tallack, diretor de análise de dados da Health Foundation, explica: “Apesar do progresso feito pelo NHS no aumento da atividade, é provável que a lista de espera para cuidados eletivos continue a crescer durante vários anos. Por trás destes números estão pessoas ansiosas por um diagnóstico, pacientes com dores evitáveis e vidas colocadas em espera”. De 2008 a 2015, o NHS cumpriu consistentemente um padrão de espera de 18 semanas (ou menos) para 92% dos pacientes de cuidados eletivos. Mesmo com todo o esforço logístico e tecnológico do NHS, de fevereiro de 2016 até 2023 o tempo médio de espera ainda é de 14,5 semanas.
Todas as nações estão tentando implantar sistemas de gestão de filas que reduzam as esperas. No próprio Reino Unido, por exemplo, o NHS Foundation Trust Guy e o St. Thomas Hospital conseguiram reduzir a lista seletiva com um novo modelo: duas salas de cirurgia funcionando lado a lado. Assim que um procedimento é concluído, o próximo paciente já está sob anestesia e pronto para ser transportado. Os enfermeiros estão de prontidão para esterilizar a sala e, em vez de demorar 40 minutos entre os casos, a demora é inferior a 2 minutos. Kariem El-Boghdadly, o anestesista-consultor que desenvolveu o programa, compara-o a um pit-stop de Fórmula 1: “Eles têm uma pessoa cuidando da roda traseira direita e uma pessoa cuidando da roda dianteira esquerda. A sala de operações é efetivamente assim. Excluímos qualquer tempo de inatividade. A gente se livra de qualquer momento em que a sala cirúrgica não tem um paciente sendo operado”, explica ele.
Da mesma forma, nenhum país abrirá mão de utilizar todas as plataformas tecnológicas disponíveis, incluindo, claro, as máquinas de GenAI, como o ChatGPT, que nos últimos meses sequestraram a atenção do mercado de saúde. De acordo com estudo realizado pelo British Standards Institution (BSI), quase metade da população do Reino Unido (49%) já apoia o uso de inteligência artificial (IA) para aliviar as listas de espera do NHS, sendo que 54% dos entrevistados estão entusiasmados com o potencial da IA para melhorar a precisão dos diagnósticos. Na mesma linha, 37% preveem que até 2030 as GenAIs se tornarão ferramentas regulares de médicos e hospitais. Exemplo: considere dois pacientes no Reino Unido com dor lombar aguardando uma injeção terapêutica. Por hierarquia de chegada, o primeiro aguarda 36 semanas pelo tratamento e, tradicionalmente, seria agendado antes do segundo, que aguarda há 27 semanas. O primeiro está na casa dos 30 anos e tem boas condições físicas, enquanto o segundo está na casa dos 60 anos, mora em uma área carente e teve três atendimentos de emergência relacionados a sua dor no último ano. Com esses dados, a prioridade pode mudar, permitindo que o segundo seja atendido primeiro.
O NHS já testa aplicações em GenAI para Gestão Inteligente de Filas (“esperar bem”). A plataforma da empresa britânica C2-Ai, por exemplo, implementada no NHS Cheshire & Merseyside já mostrou sua æ: nos primeiros 125 mil pacientes gerenciados pela aplicação, o sistema possibilitou (1) uma redução de dois terços na necessidade de UTI (pacientes de maior risco); (2) 125 leitos-dias economizados para cada 1.000 pacientes da lista de espera; e (3) uma redução de 8% nas internações emergenciais (a plataforma é dinâmica e os algoritmos calculam os riscos clínicos individuais à medida que as informações mudam). Isso talvez não reduza drasticamente as listas, mas fará com que o sistema seja mais justo e tenha maior equidade.
De qualquer modo, fica claro que é preciso um discurso sensível a todos os que de uma forma ou de outra aguardam sua vez nas infindáveis listas de espera. É difícil. Como dizer a alguém que está morrendo, ou que tem dores críticas, ou que está definhando e aguarda uma consulta, ou terapia, ou cirurgia, ou cuidados emergenciais, que o “sistema não pode resolver o seu problema no tempo resolutivo necessário”? Seja no Brasil ou nas demais nações, como equalizar uma narrativa consistente que minimize os problemas depressivos que a espera impõe? Não há uma justificativa que caiba dentro da variabilidade de cada paciente, esteja ele na India ou no EUA. No fundo, o paciente precisa ouvir algo que quase nunca é dito claramente: “desculpe, mas você terá de esperar 6 meses pela cirurgia. Existem milhares à sua frente. A sua condição não estabelece necessariamente uma prioridade, mas tão somente uma senha de acesso. Não sei quais são seus limites, mas agora você conhece os limites do Sistema”.
Pegando emprestada a fina ironia de Saramago, talvez existam exemplos de enunciados dirigidos àqueles que esperam. Em sua obra, citada aqui no início, ele expõe um diálogo entre o primeiro-ministro e o cardeal dessa nação fictícia, que teve a morte eliminada da vida de seus habitantes. Logo após a percepção de que ninguém mais morreria no país, eles conversam por telefone. Descreve o autor: “...houve uma nova pausa e o primeiro-ministro pergunta: diga-me cardeal, o que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer? Como ela comunicará a todos que não há mais ressurreição? O cardeal, pensativo, demora em responder. Primeiro-ministro, o senhor sabe que sem ressurreição não pode haver igreja! Se eu fosse o Papa, primeiro-ministro, perdoe-me Deus pela vaidade, mas eu mandaria pôr em circulação sem maiores explicações uma nova indulgência: A partir de hoje, a morte está adiada”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)