Em junho de 1993, o professor David Gelernter, da Universidade de Yale, chegou ao seu escritório no departamento de ciência da computação. Ele carregava uma grande pilha de correspondências fechadas. Um pacote em forma de livro estava em um Ziploc de plástico (achou que parecia uma dissertação de doutorado). Ao abri-lo, uma fumaça branca pungente saiu seguida de um estrondo. Estilhaços atingiram seus olhos, mãos e torso, bem como quase tudo ao seu redor. Ele sobreviveu, perdendo a visão de um olho e a maior parte da mão direita. Gelernter foi a 14ª pessoa atacada pelo serial killer Theodore Kaczynski (“Unabomber”), que de 1978 a 1995, movido por uma ideologia contrária a vida tecnológica moderna, matou 3 pessoas e feriu outras 23 numa série de atentados (cartas-bomba).
Dois anos depois do ataque, Gelernter recebeu outra carta de Kaczynski com uma mensagem “explicando que seu ataque era devido” ao seu livro mais recente (“Mirror Worlds”), publicado em 1991 (época em que menos de 1% da civilização tinha acesso à Internet). Na obra, Gelernter afirmava que a computação estava prestes a revolucionar a vida na Terra. “Este livro descreve um evento que acontecerá em breve: você olhará para a tela do computador e verá a realidade. Alguma parte do seu mundo – a cidade onde você mora, a empresa onde você trabalha, o seu sistema escolar, o hospital de sua cidade – ficará pendurado ali, numa imagem colorida, nítida, abstrata, mas reconhecível, movendo-se sutilmente em mil lugares”.
Gelernter acreditava que todos os aspectos da vida seriam em breve modelados numa simulação digital paralela. “Tudo o que acontece na nossa realidade vivida será rastreado e monitorado e inserido no software por um fluxo constante de novos dados que chegam através de cabos, criando uma representação digital de alta fidelidade em tempo real do mundo e de toda a sua pulsação e fervilhamento. Esses ‘bonecos vodu de alta tecnologia’ marcarão uma nova era na relação da humanidade com o mundo feito pelo homem. Eles mudarão esse relacionamento para o bem", explicava ele. Em 2007, a revista Technology Review classificou 'Mirror Worlds' como um dos livros mais influentes na ciência da computação”, e Jaron Lanier, um dos fundadores da realidade virtual, saudou Gelernter como “um tesouro no mundo da computação”.
Essa passagem da vida de David Gelernter, como descrita acima, foi relatada no texto “A Digital Twin Might Just Save Your Life” pelo brilhante jornalista Joe Zadeh. O livro e as ideias de Gelernter nunca foram tão atuais, embora mais de 30 anos tenham se passado.
Nos dias de hoje, tudo acontece como se tivéssemos acabado de descobrir um novo continente (AI-tlantis). Um exemplo foi a notícia de março/24, comunicando que a empresa Openstream.ai havia obtido a patente de um “sistema multimodal de gêmeos digitais automatizados”, que possibilitará aos seus usuários ter um “assistente virtual especialista”. A empresa já oferece ao mercado de Saúde o EVA (Enterprise Virtual Assistant), uma GenAI conversacional e multimodal voltada ao sistema clínico-assistencial (acompanhe no vídeo uma aplicação do EVA). A empresa se orgulha de ser a única “visionária” no mercado de AI conversacional (chatbots), tendo sido reconhecida nessa posição em 2023 no afamado “Magic Quadrant for Conversational AI Platforms” do Gartner. Até que ponto ser visionário é melhor do que ser líder de mercado, como outras companhias inseridas no mesmo mapa (IBM, Google, etc.), é uma dúvida instigante. De qualquer forma, tem lá o seu mérito.
A patente obtida pela Openstream.ai lhe garante a possibilidade de oferecer aos clientes de sua plataforma Eva™ a capacidade de implantar “gêmeos digitais de especialistas humanos” com conhecimento único, podendo se envolver em conversas empáticas e livres de alucinações. Esses ‘digital twins’ podem assumir a forma de Avatars, AI Virtual ou Agentes AI Voice (chame como quiser) e interagir em qualquer idioma, colaborando com os usuários para que atinjam seus objetivos de saúde. Isso permite que uma empresa dimensione e implante gêmeos de suporte ao atendimento ambulatorial, ou mesmo apoio técnico aos profissionais de saúde, 24 x 7 (como copilots-especialistas). “Implantar gêmeos digitais de funcionários, especialistas ou executivos de destaque, que reproduzem a aparência e o comportamento de suas contrapartes humanas, permitirá que uma empresa tenha acesso em escala a recursos especializados que de outra forma seriam impossíveis”, explica David Stark, CMO da Openstream.ai.
O estudo “Eva: A Planning-Based ExplanatoryCollaborative Dialogue System” mostra em detalhes a engenharia contextual e computacional que suporta o EVA. Essa notável evolução é fruto das chamadas “sinapses miraculosas do século XXI”, aqueles insights da inteligência humana que nos levam da ignorância à sabedoria num clicar de dedos. Assim, estamos iniciando o processo de criação de ‘gêmeos digitais espertos’, ou entidades virtuais que nos conheçam tão bem que possam nos apoiar nas decisões, como, por exemplo, no caso de nosso médico particular, ou de família.
“Comecei a pensar o que seria um humano digital. Meu pai faleceu há alguns anos e ele sempre me ajudava nos momentos críticos. Eu confiava nele para tomar as decisões comigo. Todas as memórias, experiências, aprendizados e conexões emocionais que construí com ele, que formam parte da minha vida, eu gostaria de poder acessá-las de alguma forma. Tomamos decisões o tempo todo, mas sozinhos. Seria útil e bom se tivéssemos alguém de confiança para perguntar “você leu este livro, o que você achou sobre isso? Você encontrou essa evidência? Leu esse artigo científico? O que acha dessa decisão?”, explicou Siddhartha Mukherjee, oncologista, pesquisador e professor da Universidade de Columbia (autor de “Emperor of All Maladies”, que recebeu o Prêmio Pulitzer) numa longa entrevista publicada em março/2024. Talvez Mukherjee já estivesse pensando na holística de transformar a inteligência artificial em algum tipo de avatar que pudéssemos consultar de forma simples, assertiva e que fosse uma espécie de copilot personalizado, um assistente que trouxesse segurança as nossas decisões, principalmente aquelas que envolvem a Saúde.
Essa ramificação tecnológica abre espaço para os chamados DTDs (Digital Twins of Doctors), que são réplicas digitais de médicos (geradas por IA), que se assemelham muito às suas características pessoais. O estudo da University of Illinois, “Doctors’ perceptions of using their digital twins in patient care”, publicado em dezembro/2023, mostrou a percepção de um grupo de médicos sobre a utilização dos DTDs no atendimento aos pacientes. A tabela abaixo mostra a percepção dos médicos que participaram do estudo sobre 19 benefícios que os DTDs podem gerar na relação médico-paciente.
O estudo também mostra as preocupações dos médicos e os impactos econômicos da adoção dos DTDs. Assim, se já tínhamos alcançado alguma maturidade no desenvolvimento e oferta de Gêmeos Digitais de Pacientes, agora estamos assistindo a crescente pesquisa de Gêmeos Digitais de Médicos, que poderão ser muito mais úteis: um único médico possui mais de uma centena de pacientes, que poderão acessá-lo ao mesmo tempo.
Nos próximos meses veremos ofertas de DTDs, geradas por muitas empresas de IA, como a Openstream.ai. A Associação Médica Americana (AMA) adotou o termo “inteligência aumentada” em vez de “inteligência artificial” para descrever como IA vai alterar o mainstream da comunidade médica. Esta escolha realça a perspectiva médica nos EUA sobre IA: uma ferramenta para melhorar e apoiar os profissionais de saúde, em vez de os substituir. Uma preocupação procedente: de acordo com relatório da Association of American Medical Colleges (AAMC), os EUA estão à beira de um brutal gap de médicos, sendo que até 2034 esse déficit deve estar entre 17.800 e 48.000 médicos de cuidados primários, sendo de 21.000 e 77.000 de médicos especialistas.
“O gêmeo digital do médico verá você agora”. A ideia de que os DTDs possam reduzir a escassez de profissionais de saúde, passando a fazer parte do atendimento clínico-assistencial é absolutamente real. É provável que até 2030, um avatar gêmeo digital de seu médico apareça na sala de espera (virtual), lhe dê boas-vindas e num ambiente de teleconsulta (também uma sala virtual) forneça procedimentos ambulatorial tal qual seu médico o faria. Afinal, o que será mais proveitoso e escalável para os pesados Sistemas de Saúde: um gêmeo digital do paciente ou do médico?
Agentes conversacionais (DTDs) permitem a simulação de interações “face a face”, que por sua vez permite o desenvolvimento de confiança mútua, de um melhor relacionamento e envolvimento com os pacientes, adicionando valor a comunicação e a satisfação do paciente. Gerar DTDs não será um desenvolvimento fácil, embora os conceitos de facilidade e dificuldade na computação sejam hoje nebulosos. As pesquisas mostram que criar DTDs confiáveis requer esforços significativos de concepção (design) e de segurança e privacidade. O fato é que usar um DTD como um “agente conversacional incorporado”, que possua alto realismo e compartilhe uma semelhança real com o médico do paciente (por exemplo, facial, voz, empatia, etc.), poderia mitigar os crescentes déficits mundiais de profissionais de saúde. Quantos pacientes um DTD poderia atender numa manhã? Algo como 10, 100 ou 1000?
Em pouco tempo, teremos gêmeos digitais, avatares, humanoides, robôs e aplicações multifuncionais, sejam elas representações virtuais de médicos ou de pacientes. No meio dessa ‘crescência’, no interior de nossas credulidades, somos confrontados todos os dias com o espanto e com a surpresa. São tempos difíceis para explicações fáceis. Parece que a vida se intensifica, nos intensifica, cresce, se amplia... Nossa mente é convidada a se expandir, ou, talvez, seja obrigada à expansão sob pena de extinção. Como escreveu Sara Walker, cientista, física, astrobióloga e diretora do Beyond Center for Fundamental Concepts in Science: “Para compreender a vida pode ser necessário unificarmos o biológico e o tecnológico, da mesma forma que o celeste e o terrestre foram unificados nas nossas explicações para o movimento. A tecnologia, assim como a biologia, não existe na ausência de evolução. A tecnologia não está substituindo artificialmente a vida – ela é a vida”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)