Quando será o próximo surto pandêmico? Epidemias devem continuar a brotar periodicamente, mas pandemias podem demorar bem mais do que alguns epidemiologistas preveem. Em abril último, o The New York Times provocou seus leitores com o título: “Você pode ser uma pessoa diferente após a pandemia”. O artigo escrito por Olga Khazan enfatiza a possibilidade de uma "reforma deposicional pós-pandemia". Por exemplo: um tipo cronicamente atrasado em seu cotidiano (antes do surto), poderia obter uma nova consciência para ser mais pontual pós-covid-19; se é uma pessoa introvertida, poderá trabalhar para se tornar mais sociável; se a neurastenia quase sempre lhe acompanha, pode considerar ser mais sociável depois do surto. “Sua personalidade não está gravada em pedra e mudanças em sua personalidade podem ser alcançadas em apenas alguns meses", explica Khazan. Em junho, o não menos respeitado Times estampou o artigo “Seus hábitos pandêmicos podem desaparecer, mas a força e a sabedoria que você adquiriu não”, onde salienta: “Humanos são adaptáveis; quando o ambiente e as circunstâncias mudam, nós também mudamos. O uso de máscaras é um exemplo óbvio: poucas pessoas eram adeptas antes de março de 2020, mas rapidamente se tornaram uma segunda natureza facial para muitos”.
Embora as rotinas possam desaparecer e velhos hábitos voltar, a pandemia pode ser um ‘botão de reinicialização’. Estudo realizado em 2017 e publicado no Quarterly Journal of Economics (“The Benefits of Forced Experimentation: Striking Evidence from the London Underground Network”) mostrou que depois de uma dramática greve trabalhista em Londres (2014), muitos usuários do metrô adotaram outros transportes alternativos como substituto e mantiveram o hábito. Ou seja, quando as pessoas são forçadas a mudar de rumo por uma “violência simbólica”, uma parte delas encontra opções melhores e as assumem em sua vida. Em outro trabalho, publicado em 2020 (“Two-thirds of Americans think quarantining during coronavirus pandemic has made them a better person”), cerca de 70% dos entrevistados disseram que aprenderam algo sobre si durante a pandemia, sendo que mais da metade se sentiu envergonhado pelo que valorizavam antes de 2020.
No contexto de um ‘novo surto pandêmico’, é provável que estejamos muito mais preparados individualmente para evitá-lo. Medo, angústia e ansiedade são introjetados em nosso subconsciente e serão aplicados instintivamente para proteção a uma nova pandemia. Pierre Bourdieu (1930-2002), o mais importante sociólogo de língua francesa do século XX, nos ajuda a entender como a Covid-19 está moldando nosso inconsciente. Bourdieu em sua vasta literatura, cunhou como as forças do capital econômico (posses), capital cultural (saberes), capital social (relações) e capital simbólico (honra) desempenham uma colossal influência na composição de cada indivíduo (e do coletivo), com desdobramentos viscerais no campo social. “É o volume e a composição de um ou mais capitais adquiridos que diferencia a trajetória social de cada um de nós”, explica Bourdieu. Estamos sempre absorvendo as afluências, disputas, autonomias e estruturas que nos moldam e transformam. Sua ideia de “habitus” influenciou os principais filósofos, antropólogos e sociólogos do final do século XX. Trata-se de um repertório de modos, gostos, comportamentos, violências, tratamentos injustos, recursos negados e fronteiras as nossas aspirações que moldam constantemente nosso pertencimento social. “O habitus, como a palavra implica, é o que se adquiriu e que se incorporou de forma duradoura ao corpo em forma de disposições permanentes. Por isso, o termo nos lembra constantemente que existe um legado, ligado à nossa história individual, que é incorporado ao nosso modo genético de pensamento”, explica Bourdieu.
Nesse contexto, a Covid-19 é uma estrutura patológica que se interiorizou na mente dos agentes sociais como “habitus”, e, consequentemente, se exterioriza na mudança de comportamentos sociais. O estudo “Covid-19, Fato Social Patológico e Habitus”, de Joel Nemona Mendes, da Universidade Federal de Uberlândia, explica mais: “As mudanças sociocomportamentais ocorridas desde a pandemia são produtos de estruturas estabelecidas na luta contra a proliferação da pandemia (lavagem constante das mãos, álcool em gel, uso de máscara, distanciamento social, confinamento, evitar aglomerações, etc.). O habitus é um sistema de preferências, estilo de vida, padrões de percepção, pensamentos e ações que criam uma predisposição para agir e que influenciam nossas estratégias inconscientes na prática diária”.
Nos dias de hoje, Bourdieu não hesitaria em expressar o impacto devastador que a pandemia provoca em nosso subconsciente, gerando um rastilho de ‘violência simbólica’ que atua em nossas avaliações, expressões, saberes, princípios e valores. A Covid-19 vai alterar nosso habitus por décadas, talvez séculos. Crianças nascidas a partir de 2018 terão incrustradas em seu subjetivismo social elementos simbólicos (vírus, vacina, isolamento, negacionismo, etc.) que outras gerações sequer souberam existir. Esses elementos ficarão “calcificados” em nosso habitus gerando uma “grade de proteção pandêmica” inimaginável. Levaremos para o resto de nossas vidas expressões virológicas que estarão constantemente em nosso subconsciente. Quando acuados, pensamos o pior e nosso habitus reage de forma a ‘neutralizar o pior’. Quando as Torres Gêmeas desabaram, a grande maioria imaginou que os EUA seriam assolados por ataques terroristas externos periodicamente, talvez em proporções maiores. Afinal, pós ‘11 de setembro’ o número de inimigos do país só cresceu. No entanto, não foi o que ocorreu. Nenhum outro ataque semelhante ou minimamente comparável aconteceu. O ufanismo norte-americano pode explicitar que o Governo “se preparou para evitá-los”. Meia verdade: o habitus gerou novas formas de proteção em cada um dos indivíduos, que de maneira positiva (consciência colaborativa, coletivismo, patriotismo, preservação, vigilância, etc.) ou negativa (negacionismo, intolerância étnica, egoísmo, aquiescência a falta de privacidade, etc.) cunhou uma nova ‘cultura’ (ou habitus). O mesmo na Segunda Grande Guerra, que desestabilizou o mundo e a sua geopolítica (guerra fria), parecendo nas décadas seguintes que a “Terceira” seria eminente. Mas ela não veio, como também não veio mais nenhuma hecatombe bélica mundial. Em parte, porque o habitus geracional transgrediu as expectativas e cunhou um senso pacifista na convivência dentro dos espaços sociais. Se nossa ‘razão objetivista’ clama pelo retorno ao “novo normal”, nossa instancia subjetiva (em geral inconsciente) se arma com estratagemas e ferramentas sociais “capazes de lutar no front contra a próxima ameaça pandêmica”.
Por outro lado, estatisticamente, pandemias não são eventos periódicos ou sequenciais. O estudo “Intensity and Frequency of Extreme Novel Epidemics”, publicado em agosto último no Proceedings of the National Academy of Sciences, utilizou registros de surtos anteriores para estimar a periodicidade e a probabilidade de sua recorrência. Descobriu que uma pandemia, com impacto semelhante a Covid-19, pode ocorrer em qualquer ano daqui para frente numa probabilidade de 2% (sem considerar qualquer elemento influenciador de ‘habitus’). Embora os dados também mostrem que o risco de surtos intensos pode estar crescendo, os pesquisadores estimam que uma pandemia semelhante a Sars-Cov 2 provavelmente só ocorreria dentro de um período de 60 anos, um resultado, segundo o estudo, "muito abaixo do que intuitivamente se espera". Da mesma forma, a pesquisa conclui que uma pandemia capaz de eliminar toda a vida humana poderia ocorrer nos próximos 12 mil anos. Isso não significa que podemos contar com um “adiamento” de 60 anos para a próxima pandemia, e nem que estejamos livres de uma calamidade gripal (como a ‘espanhola’), ou que deixemos de ter inúmeras epidemias localizadas à nossa frente. Significa que probabilisticamente as possibilidades não são imediatas, e serão menos ainda devido aos ‘mecanismos sociológicos de proteção que influenciam decisivamente a sua ocorrência’ (habitus).
Na realidade, é falsa a ideia de que “todos fomos pegos de surpresa” como o ataque do coronavírus. Durante anos, epidemiologistas e outros especialistas alertaram que estávamos na eminência de uma pandemia global de grande potência. A maioria dos pesquisadores também já sabia que sua ocorrência seria originária de animais. Na verdade, 75% das doenças emergentes hoje são zoonóticas e a Covid-19 não foi diferente. Ou seja, todo scientific-establishment já tinha em mente que “as doenças zoonóticas seriam cada vez mais arriscadas para os humanos por causa das próprias ações humanas”. O clima, a invasão dos habitats de vida selvagem, as viagens globais, superpopulação, urbanização, comercio global e inúmeros outros fatores erigidos pelo próprio homem ajudaram a disseminar as patologias transmitidas por animais.
Mesmo na investigação científica epidemiológica, sem considerar os fatores sociológicos (habitus), a detecção viral deverá ser tornar muito mais eficiente. Eddie Holmes, especialista em virótica da University of Sydney, orienta: “o vírus permanece em um animal (morcego, porco ou pássaro) por séculos, até milênios. E quando tem a oportunidade, salta para dentro de uma pessoa. Chamamos esse processo de ‘spillover’. Alguns vírus são particularmente bons nesse processo, e o fazem com muito mais frequência, como o coronavírus. Se você olhar para a evolução dele, verá muitos pulos de hospedeiro para hospedeiro”. O trabalho de Gregory Gray, por exemplo, epidemiologista e professor da Duke University School of Medicine (“Mitigating Future Respiratory Virus Pandemics: New Threats and Approaches to Consider”), publicado em março último, mostra novas formas de ‘detecção epidemiológica’ que deverão ser muito mais exitosas. "O vírus precisa se estabelecer. Ele precisa se adaptar e então pode se tornar altamente transmissível. A ciência evolucionária sugere que é um processo", explica Gray. Esse processo, passo a passo, leva anos, décadas e até séculos, e isso dá aos cientistas uma maneira mais eficiente de identificar os vírus em animais que são mais perigosos para humanos. “Agora podemos identificar vírus enquanto eles ainda estão fazendo a passagem, antes que se adaptem totalmente aos homens”, diz ele. Um exemplo dessa prática foi dado pelo próprio Gray: recentemente ele e seus colegas pesquisaram por ‘coronavírus desconhecidos’ em pessoas com pneumonia, e rapidamente o encontraram. Examinando cerca de 400 amostras de pacientes com pneumonia, na Malásia, descobriram pelo menos quatro pessoas infectadas com um ‘novo-coronavírus’ que provavelmente veio de um animal.
Nesse sentido, milhares de pesquisadores ‘cercam’ morcegos asiáticos (vírus Nipah, uma das dez doenças que a OMS aposta como pandêmica); isolam mosquitos na América do Norte (espécie recém-descoberta por cientistas na Baía de Guantánamo pode espalhar o Zika); capturam camelos africanos (que espalham a MERS); ou porcos na Europa, responsáveis pela gripe suína; ou macacos na América do Sul (febre amarela); ou gambás australianos, pássaros, javalis, etc. Podemos dizer que todas as nações desenvolvidas triplicaram suas atenções epidemiológicas de origem animal depois do Sars-CoV-2. David Aronoff, professor e diretor da Divisão de Doenças Infecciosas do Vanderbilt University Medical Center, explica como estaremos muito mais atentos às pandemias: “Podíamos não estar preparados para a Covid-19, mas aprendemos lições sobre como lidar com outros patógenos. É possível ficar paralisado de ansiedade e medo sobre o que vem a seguir, mas é para isso que fomos treinados. Somos preparados para procurar ameaças emergentes e descobrir como lidar com elas. Precisamos de mais defesas, mais recursos e os líderes em Saúde agora reconhecem definitivamente essa necessidade”.
Se a Covid-19 é o surto mais mortal que a civilização já presenciou em mais de 80 anos, é certo que o ‘habitus’ gerado por ela terá consequências positivas e negativas pelos próximos 30 ou 50 anos. Não seremos os mesmos. Crianças de 5 a 15 anos, que passaram os últimos 18 meses afastadas de seu ‘espaço social escolástico’, isoladas, repletas de ansiedade, compartilhando com seus pais, amigos e professores as misérias epidemiológicas, terão outra perspectiva sanitária ao menor sinal epidêmico. Quando as máscaras não forem mais necessárias vamos engavetá-las em lugares próximos, talvez armazenadas em maior quantidade. Nosso álcool-gel terá prateleiras de fácil acesso, nossas redes sociais estarão muito mais atentas ao menor ‘sinal evidencialista’ de patógenos ameaçadores. Nossas escolas serão híbridas e nossos escritórios voltarão ao normal, mas sempre estarão prontos a uma rápida migração domiciliar. A pesquisa farmacológica receberá dobrada atenção dos eixos econômicos globais, que não podem mais serem pegos de surpresa pelo “trade stagnation by vírus”, como exposto pelo Financial Times. A saúde pública e privada das nações do G50 estarão muito mais integradas ao menor sinal de um ‘patógeno-arriscado’, independentemente de suas “colorações ideológicas”. Novas formas de monitorar eventos patogênicos de massa serão otimizadas por ‘máquinas inteligentes’ e ‘algoritmos treinados’ para rastrear mínimas variantes transmissoras. Planos, projetos e iniciativas se sustentabilidade ambiental crescerão como não cresceram nas últimas década, impulsionados pela sociedade civil, mas também pela “comunidade econômica global” que pode ficar combalida em poucos meses pandêmicos, como já ocorre com várias ‘cadeias globais de suprimentos’. Em uma década nossas roupas serão ‘biodetectoras’ de bactérias, vírus e fungos suspeitos, como já sucede hoje com os genossensores. Os ambientes fechados terão alertas e alarmes capazes de identificar nano-organismos (‘cell-predators’), e os mecanismos de vigilância sanitária receberão aplicações em 5G capazes de comunicar riscos epidêmicos globais em segundos. Além disso, o ‘habitus-covidiano’ fará com que todos estejam mais atentos e desconfiados do ar, água e terra.
A lembrança viva de milhões de indivíduos que perderam amigos, pais, filhos e cônjuges será contada e recontada à cada criança ou jovem pelas próximas décadas. Cada imagem dolorida dos hospitais lotados de cadáveres será uma referência midiática, como ocorreu no último “11 de setembro”, que depois de 20 anos fez emergir aos olhos de cada espectador aquelas devastadoras imagens. Esse será o legado que a “geração-covid-19” vai introjetar em nosso subconsciente. Mesmo a ‘iniquidade sanitária’ será repensada por economistas e lideranças que orquestram o “dinheiro do mundo”. Estão aprendendo na carne, no íntimo e nas insuficiências do capitalismo que o patógeno pode entrar em Wall Street vindo dos mais elegantes bairros londrinos, como das mais ermas e miseráveis regiões do mundo. Não há qualquer fiapo de otimismo nessas projeções: elas já estão ocorrendo. O medo pandêmico não vai resolver tudo e nos proteger de todos, mas o novo habitus talvez seja a maior força que tenhamos para ajudar a ciência e a tecnologia a nos distanciar da próxima pandemia. Epidemias teremos muitas, mas é provável que as pandemias só voltarão quando desaprendermos a evitá-las. “Quando o habitus encontra o mundo social do qual é o produto, tudo se passa como um “peixe no oceano”: ele não sente o peso da água e toma o mundo em torno de si como o único correto” (Pierre Bourdieu).
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)