O Havaí não é aqui, mas isso não impediu Gabriel Medina de dominar as ondas de Pipeline, em plena América do Norte, e trazer o nosso primeiro título mundial de surf para o Brasil.
Quando o assunto é a onda de inovação na saúde, entretanto, podemos afirmar sem medo de tomar uma grande vaca (como diria o surfista) que o vento sopra mais forte em outra direção. Os Estados Unidos vêm despontando novamente como o principal pólo de inovação tecnológica do mundo.
Apenas para que se tenha uma ideia, nos últimos três anos o total de capital de risco investido em empresas healthtech por aquelas praias aumentou 318%. Se olharmos para um horizonte de dez anos, respire fundo, esse crescimento chega perto de 60.000%!
Obviamente que esse crowd impressionante não aconteceu somente movido por uma histeria coletiva entre os investidores. Uma série de mudanças na legislação americana, como o ACA e o HITECH, criaram muitas novas oportunidades para a saúde digital, algo que antes simplesmente não existia.
Um dos reflexos desse sol escaldante - e que vem, sim, aquecendo os negócios no setor por lá - é o fato de que já surgiu uma nova geração de aceleradoras especializadas em ajudar startups de e-health a surfar essa onda. Nomes como Rock Health, Startup Health e Blueprint Health passaram a fazer parte do vocabulário de empreendedores americanos, com a mesma reverência dedicada até então apenas às míticas Y-Combinator e TechStars.
Mas é prudente não se empolgar demais... A despeito do que esses números possam indicar, nem tudo vem sendo um mar de rosas para a grande maioria do público americano. É curioso.
Apesar de todo dinheiro investido, de tantas pessoas talentosas envolvidas e de todo arcabouço legal favorável, muito pouco dessa inovação está se refletindo no oceano vermelho das contas explosivas do setor de Saúde. Especialmente naquela parte onde elas são verdadeiros corais prontos a esfolar o cidadão comum que, por azar, cair nas águas agitadas - e nem sempre transparentes - das despesas com hospitais e consultas médicas.
Sim, esse é o verdadeiro redemoinho a dragar a maior parte dos recursos do sistema e que deveria, portanto, ser a primeira rocha a receber o impacto de toda essa onda de inovação. Não é o que se tem visto até aqui, a despeito de a própria Organização Mundial da Saúde ter eleito os canais de distribuição assistencial como os alvos prioritários das novas políticas nacionais de e-health daqui em diante.
OK, é verdade que lá existem nichos que estão na crista da onda, como é o caso dos Prontuários Eletrônicos. Todavia é bom lembrar que esse movimento dropou num programa de incentivos do governo federal dos EUA e não numa vontade genuína dos provedores em transformar radicalmente a experiência do paciente.
De seus destacados postos de salva vidas, executivos e profissionais da área de saúde observam tudo da areia se perguntando sobre quais fatores estariam limitando a formação de um gigantesco tubo capaz de arrastar a entrega direta de saúde para um novo patamar, longe dos custos que afastam a população de um acesso mais amplo e rápido ao seu direito à saúde de qualidade.
Afinal não foi isso que aconteceu após os tsunamis digitais que atingiram os segmentos de varejo, viagens, entretenimento e finanças nos últimos anos? Ora. Agora chegou a hora de lançarmos no mar da revolução digital os muitos castelos de areia construídos e mantidos intocados nas conhecidas ilhas do setor de saúde...
Olhando de cima parece simples, mas analisando a questão um pouco abaixo da superfície vemos que ela está cercada por tubarões representados por razões históricas, culturais e financeiras da indústria americana.
Para entender melhor vamos cortar o mar, como uma prancha, em duas partes.
Do lado dos provedores o problema parece estar ligado a três principais dificuldades: o modelo de negócios vigente, as prioridades da agenda de saúde e a aversão ao risco do desconhecido.
O predomínio de um modelo de pagamento baseado em eventos (fee for service) é um dos maiores obstáculos para a adoção de inovações digitais entre os provedores daquele país. Isso porque, nesse modelo os provedores são pagos apenas quando cobram um terceiro por um evento ocorrido, como no caso de um exame ou consulta, e isso dificulta a adoção massiva de novas formas de intervenção que visem apenas o bem estar do paciente sem nenhuma remuneração direta e pontualmente associada.
Em segundo lugar existe a questão das prioridades. Com empresas correndo atrás do resultado e da adaptação às novas normas (como a implementação do ICD-10), bem como do medo de epidemias como o Ebola, fica difícil encontrar tempo e energia para se dedicar a inovações, por mais que elas tragam benefícios a todos.
Em terceiro lugar vem a aversão ao risco do negócio de saúde. Sempre é bom lembrar que nesse oceano assentado em recifes tão espinhosos uma queda pode ser fatal, mas como se não bastasse isso ainda existem as multas pesadas pelas más práticas médicas, que apenas em 2013 atingiram um valor de US$ 3.7 bilhões. Nesse caso, as novidades podem representar uma boa dose de risco ao negócio, se ainda não estiverem minimamente testadas e preferencialmente regulamentadas.
Do lado dos empreendedores, a correnteza atua no sentido contrário devido a outras razões.
Em primeiro lugar, com a grande quantidade de startups de saúde surgindo na praia a cada ano muitos empreendedores que jamais estiveram no inside do sistema de saúde passaram a visitar grandes empresas do ramo com a promessa de que ajudariam a corrigir antigas distorções. Isso tem causado uma desconfiança natural para com os forasteiros que, às vezes, parecem querer um lugar rápido à sombra.
Em segundo lugar, a falta de conhecimento efetivo dos problemas pode ser fatal para uma nova empresa, que assim irá gastar muito tempo remando, manobrando e fazendo pose para a torcida, mas sem criar algo que resolva algum grande problema de fato.
Por fim o ciclo de venda no setor de saúde é sempre muito longo, podendo levar mais de um ano para chegar a um final incerto. Como tempo é dinheiro isso pode ameaçar a existência de uma startup, afogando-a em uma série de reuniões de prospecção para depois fazê-la morrer na praia.
Nada disso, porém, tem sido capaz de frear a disposição dos participantes desse novo ecossistema. Certos de que chegou a hora da revolução digital atingir um setor tão problemático quanto estratégico, o número de empresas, empreendedores e produtos continua crescendo como uma incrível onda de 20 pés.
E para isso continuam contando com a sempre bem vinda força dos ventos favoráveis soprados pelos órgãos oficiais do governo americano. Apenas para ilustrar, no início deste ano o respeitado Center for Disease Control and Prevention (CDC) emitiu um parecer que teve o efeito de um maravilhoso backflip na cabeça dos seus expectadores reconhecendo a efetividade de intervenções digitais no controle à diabetes, algo inimaginável há poucos anos.
Só se aprende a nadar se atirando no mar.
Mas e por aqui? Num país com problemas de distribuição tão grandes quanto sua costa continental, porque será que no Brasil ainda não começamos a mexer no arcabouço legal para abrir caminho para empreendedores, investidores, provedores a fim de que seus esforços possam ver diminuídas suas chances de, no final do dia, arrebentar na praia e virarem espuma?
Nas conversas que tenho tido com colegas, empreendedores healthtech brasileiros como eu, é comum experimentar uma empolgação contagiante típica de pessoas que estão atuando num setor repleto de significado e que tem, sim, um bocado de problemas para serem solucionados. Sentimos orgulho de fazer parte dessa primeira geração de inovadores que, como o jovem Medina, de uma forma ou outra se atiraram ao mar nervoso com suas pranchas abraçadas ao peito e enfrentaram, num primeiro momento, um mercado gelado para as suas novas propostas de valor.
A maré parece estar subindo, mas como sabe todo surfista, apenas água e boa vontade não são capazes de fazer um novo campeão das ondas.
Claro que não temos a esperança de encontrar aqui um digital health space como aquele criado pelo governo Obama. A diferença entre as duas praias é tão grande quanto a que separa o Vale do Silício do Vale do Anhangabaú. Mas numa época em que grandes transformações estão atingindo a vida de cada um de nós, em função do acesso fácil às tecnologias de uso pessoal, será que atores importantes do governo brasileiro não deveria fazer também sua parte soprando a favor das mudanças necessárias para a atualizar a legislação e digitalizar os processos ligados à Saúde?