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90 dias no garimpo

Era como uma vila. Uma cidade flutuante. Praticamente tudo acontecia sobre o rio, dentro ou à beira dele: o trabalho, o banho, a comida. O arroz cozido com a água avermelhada até parecia temperado com colorau.


A

poucos meses de completar meus 18 anos, cheguei em Abunã, distrito de Porto

Velho, em Rondônia. Desci do ônibus à beira do rio que dá o nome ao povoado,

afluente do rio Madeira, e contemplei meu primeiro pôr do sol de dentro da

floresta. Observei algumas palhoças, tipo de cabana rústica coberta de palha,

que serviam de abrigo para garimpeiros e comerciantes. Em uma delas, funcionava

um boteco, rudimentar como tudo o que aquele pedaço secreto de mundo tinha a

oferecer. Perguntei ao dono do estabelecimento se poderia amarrar minha rede e

passar a noite ali. Ele concordou.


Eu

já sabia que seria assim, por isso levei minha própria rede. Também tinha

consciência, quando deixei a periferia de São Paulo, onde morava, de que as

coisas poderiam se tornar violentas por lá. Mas não tão rápido. Não tão

próximas. Momentos após minha chegada no bar, dois homens começaram a discutir,

quando um fincou uma faca no outro. O sujeito morreu. Não existia posto

policial no garimpo, embora, na década de 1980, a força militar já tentasse

controlar as atividades de perto. O perto, porém, ainda era muito longe.


Esse

fato não diminuiu a determinação que me levara a percorrer o interior do

Brasil, em viagem de 50 horas de ônibus até Porto Velho e, depois, mais um dia

inteiro sentido Abunã, 220 quilômetros distante da capital, por uma estrada de

terra cravada nas entranhas da Amazônia. Fizera isso por um sonho: um dia, a

caminho do trabalho, no transporte público lotado, vi passar ao lado um Escort

Xr3 branco. Pensei: "Um dia vou ter um desses".


Estava

doido para comprar aquele carro. E Abunã surgiu como uma oportunidade de fazer

muito dinheiro, mais do que jamais havia conseguido como catador de ferro

velho, feirante, ajudante em um depósito de material de construção ou

assistente de banco. Soube da possibilidade por uma pessoa que faria a mesma

jornada. Então, comprei 100 relógios, todos à prova d'água, em uma loja da

Santa Efigênia, imaginando a satisfação do garimpeiro em poder mergulhar no rio

com um acessório útil, bonito.


Quando

cheguei em casa, arranquei todas as pulseiras e joguei os relógios na água,

dentro do tanque de lavar roupa,  para me

certificar de que eles funcionariam mesmo quando imersos. Eu não queria passar

por trapaceiro. Não queria correr o risco de ser morto por um descuido.


Por

três meses, eu vivi no garimpo. Uma vida que acontece a bordo de centenas de

balsas aglomeradas, uma encostada à outra, especialmente quando o rio está

generoso. Garimpeiro chama a sorte de encontrar um local com alguma fartura de

ouro de "fofoca". Em Abunã, cada plataforma de madeira tinha no

mínimo cinco trabalhadores, e aí dá para imaginar a quantidade de gente

concentrada em poucos quilômetros.


Sobre

as balsas, existia um motor de caminhão conectado a uma mangueira e, na ponta

dela, uma maraca, espécie de trava a ser fincada no barranco. Primeiro, o

mergulhador, equipado só de óculos de mergulho e um bocal ligado ao compressor

de ar, lançava-se no rio barrento para prender a maraca lá no fundo. O motor,

então, ativava a sucção, levando para a superfície a esperança do ouro. Lá em

cima, ficavam os garimpeiros, atentos aos detritos que se enroscavam na

esteira.


Me

lembro da barulheira infernal dos motores, dia e noite, pois funcionavam também

como gerador. Me lembro ainda da palhoça que montei para mim em uma balsa, um

abrigo bem simples, só para ter uma rede onde dormir. Havia ainda as

plataformas com posto de gasolina, bares e bordéis. As chamadas voadeiras,

pequenas lanchas, levavam as pessoas de um agrupamento para o outro.


Era

como uma vila. Uma cidade flutuante.


Praticamente

tudo acontecia sobre o rio, dentro ou à beira dele: o trabalho, o banho, a

comida. O arroz cozido com a água avermelhada até parecia temperado com

colorau. E sempre tinha gente sofrendo com malária. Geralmente, o doente

passava dias ruins, com uma dor desgraçada e tremedeira.


Na

rotina do garimpo e do seu entorno, vendi os 100 relógios em uma semana, todos

pagos em ouro. Então, voltei a Porto Velho, pela mesma estrada castigada por

buracos, chuva e lama. Lá fui trocar minha recompensa por dinheiro. O que eu

não esperava era conseguir uma cotação muito melhor do que a praticada no

garimpo.


Eu

poderia ter partido naquele momento. Mas havia ali, na mecânica de uma vida

primitiva, um negócio ainda melhor do que vender relógios.


[Essa história

continua no próximo post, na semana que vem]