“Grandes realizações são possíveis quando se dá importância aos pequenos começos”
Lao Tsé
Parafrasear a pergunta feita na TV por tantos meses previamente às eleições em nosso país me pareceu uma boa introdução para instigar uma reflexão acerca de como os consumidores diretos de serviços de saúde, aqui definidos como “pacientes”, percebem os serviços prestados pelas organizações voltadas para este fim. Estamos em um momento de acentuada transição de conceitos e ideias, e o setor saúde, mais especificamente os hospitais, talvez precisem rever algumas estratégias implantadas ou por implantar, visando uma melhora de desempenho de maneira global. E isso inclui obviamente analisar com redobrado cuidado a relação direta entre os profissionais (principalmente médicos) e os pacientes por eles atendidos.
E parece mesmo ser uma boa hora para pensarmos mais profundamente sobre isso. Principalmente porque a sobrevivência de prestadores e pagadores em nosso sistema pode em breve ser colocada numa pauta prioritária, a depender dos rumos de nossa economia e decisões políticas. Nesse sentido, busca por eficiência na prestação do serviço deixa de ser considerada uma consequência prevista à luz das atuais inovações (principalmente tecnológicas), para se tornar ponto de partida para a incorporação dos meios necessários (e óbvios) para uma prática assistencial focada no valor. E aí, mais uma vez, o diferencial pode vir a ser o Corpo Clínico das organizações de saúde.
São tantas as iniciativas voltadas para a melhora do desempenho hospitalar que já estamos chegando à fase em que requentamos propostas antigas (na falta de eficiência das novas), muitas delas anunciadas como revolucionárias quando para o observador atento não passam de singelezas. Quando nos detemos ao papel do Corpo Clínico e suas responsabilidades, as redundâncias parecem ser regra, e não exceção. E algumas perguntas deveriam já ter sido respondidas. Senão vejamos:
Há quanto tempo em nosso país se discute nos incontáveis eventos públicos e corporativos temas ligados à melhoria da qualidade assistencial? E quanto a importância da Gestão do Corpo Clínico eficiente como instrumento diferencial? Em que medida algo foi realmente transformador dessas discussões?
Temos uma definição clara acerca dos conceitos mais fundamentais que permeiam essa estratégia, tais como Gestão Clínica, Governança Clínica e Responsabilidade Técnica, para ficar em poucos exemplos?
A alta Direção, governantes e acionistas dos hospitais, independente do porte e finalidade, têm plena consciência da importância do potencial transformador que representa uma gestão bem feita do Corpo Clínico? E das estratégias para colocar em prática a mesma?
Como demonstrar a relação estreita entre uma gestão clínica eficiente e os melhores resultados operacionais?
Questões e discussões listadas como fundamentais para servirem de subsídio na adoção de parâmetros consensuais de comportamento do Corpo Clínico são repetidas à exaustão há anos, sem que daí surja soluções que possam ser mensuráveis de forma confiável quanto aos seus efeitos. Também não foram criados até o momento modelos que possam ser reproduzíveis, para benefício de todos. Enquanto isso, fatores demográficos e pressões de toda ordem colocam a sobrevivência da organização na agenda do dia. De todos os dias.
A mais recente contribuição para esse debate já exaustivo, e que foge da simples descrição sobre “como eu faço” para descrever o que é uma boa gestão clínica, vem da persistência daqueles que enxergam uma dimensão muito além daquilo que aprendemos a defender como o mais seguro, o mais rentável e o mais cômodo: o atual modelo de pagamento por serviços. Através não só da contestação desse paradigma, mas também da proposição de modelos mais sintonizados com a realidade técnica e financeira do setor, inovadores vêm desenvolvendo estratégias de relacionamento com pagadores, indústria e agências regulatórias, dos quais se destaca o modelo de pagamento baseado em valor. Infelizmente, apesar de tais reflexões estarem bastante amadurecidas, e em consonância com sistemas de saúde no mundo inteiro, a paralisia ainda é a tônica. São muitos os atores que precisam alinhar motivações, contrapartidas, estratégias e expectativas.
Possivelmente como desdobramento desse movimento, têm surgido propostas estruturadas de acompanhamento das atividades dos médicos do Corpo Clínico, utilizando algoritmos que contemplam dados objetivos (assim como alguns dados não tão objetivos assim), com o intuito de avaliar a adesão às diretrizes e normas de conduta definidas previamente, resultando em escores que analisados dentro de contextos particulares inerentes a cada organização, resultam em políticas de recompensas assim como a identificação de oportunidades de melhoria na atuação desses mesmos profissionais quando não alcançam metas previamente definidas, com graus variáveis de transparência. O objetivo claramente explícito é melhorar o desempenho hospitalar abordando o segmento seguramente mais importante na complexa cadeia assistencial, o Corpo Clínico. Estão assim criadas as bases para a geração de um banco de dados que efetivamente podem resultar, após análise, num processo que pode contribuir para gerar uma cadeia de valor, pois aponta caminhos e revê atitudes em bases concretas.
Até aí tudo parece bem. O conjunto de informações que sistemas dessa natureza podem agregar é bastante robusto para definir perfis profissionais e expectativas personalizadas de atuação dos mesmos nas suas mais diversas dimensões. Servem mesmo para refinar práticas e condicionar contrapartidas de acordo com o grau de empenho no seguimento aos padrões de atuação pré-definidos e fidelização à organização. Mas continuamos a deixar de preencher lacunas importantes, e dentre essas eu destaco a principal: nossos pacientes, razão de ser de nossa atividade médica, continua a ser um elemento secundário nessa cadeia. E, a depender do peso que atribuímos às ações visando o crescimento (ou mesmo a sobrevivência) dos hospitais, o paciente pode deixar de ser o foco principal do processo. É nessa hora que gestores se reúnem e percebem que alguma coisa está errada. Que todo o investimento na aquisição de equipamentos, “big datas”, consultorias, amenidades, logística e na modernização predial ainda não foram suficientes para trazer uma reputação que recompense tanto trabalho. O hospital bacana perante seus pares pode não ser tão recomendado assim pela população que dele se utiliza.
Sarah Thomas e Steve Burril, consultores da Deloitte nos Estados Unidos, citam dados preocupantes com relação ao futuro dos hospitais e provedores de assistência médica naquele país. Citando dados do Escritório de Orçamento do Congresso, 51% a 60% dos hospitais norte-americanos podem ter margens negativas até o ano de 2025. Como uma grande parte de nossos formuladores de políticas públicas e expoentes no setor privado se inspira no modo como o irmão do norte faz, é bom atentar que, naquele país houve uma redução da expectativa de vida entre 2014 e 2015, de 76,5 para 76,3 anos, segundo o Centro Nacional de Estatísticas em Saúde. Isso não ocorria desde 1993, pico da epidemia de SIDA, seguida da gripe aviária, e pode significar (junto com outros indicadores frustrantes) que investimento em saúde mal feito ou enviesado não traz nenhum benefício. Em contraposição, cito propositadamente (em função do calor dos debates recentes), a suprema das ironias. Cuba tem uma expectativa de vida em ascensão: 79,7 anos.
Em outro artigo, destacam as principais medidas a serem adotadas pelos gestores para alcançar de padrões elevados da assistência médica nos hospitais a partir do relacionamento com médicos:
- Conheça seus parceiros
- Escolha e coloque os médicos responsáveis nos locais certos
- Apoie suas decisões baseadas em dados
- Faça valer a pena
- Seja transparente
- Forneça as ferramentas para o sucesso
Listam também as perguntas cruciais que o gestor deve se fazer para o alcance de padrões de alinhamento satisfatórios:
- Estamos comprometidos com os médicos certos, nos locais certos, com os níveis certos de desempenho?
- Temos uma combinação adequada de profissionais de saúde e especialistas para coordenar com eficácia os cuidados e gerenciar os custos para as populações de nossos pacientes?
- A capacidade atual pode acompanhar a dinâmica populacional, o acesso dos pacientes e as demandas do mercado?
- Como a nossa rede de médicos se compara à dos nossos concorrentes em termos de custo, qualidade e posicionamento no mercado?
- Temos os padrões certos de navegação e direção para atender às necessidades dos pacientes e apoiar nossa estratégia clínica?
- Como os concorrentes tradicionais e não tradicionais em nosso mercado estão envolvidos com os médicos?
- Existem eficiências a serem obtidas com nossa pegada de serviços ambulatoriais por meio de consolidação ou reconfiguração?
Os destaques ressaltam a relevância dos aspectos relacionados à assistência. Mas acrescento que não obstante as múltiplas dimensões apresentadas poderem ajudar a apontar caminhos para melhorias nesta delicada relação hospital versus Corpo Clínico, cabe ao gestor mais sensível valorizar aqueles aspectos que a letra fria dos manuais frequentemente teimam em deixar na obscuridade: pacientes e suas doenças não são, ao contrário do que sub-repticiamente muitos pensam, a mercadoria a ser negociada. Um prego é uma mercadoria. Um carro é uma mercadoria. Um paciente é mais que isso, e mais que tentativas de analisar isso no plano racional, é no intangível que o gestor revela sua habilidade. É nos ruídos, odores e ambiência organizacional que o gestor instintivamente fareja o que pode ser melhorado. E, em grande parte do tempo fora de sua mesa, enxerga além, aborda com polidez e respeito seus subordinados, aponta caminhos e corrige distorções.
Pacientes estão empoderados. Sabem distinguir de forma clara a boa da má assistência. Percebem se o suco é natural, ou colorido e aromatizado artificialmente. Dito de outra forma, não me parece ser possível obter o reconhecimento de quem quer que seja sem dar ênfase aos aspectos interpessoais com os pacientes, dos quais o médico sempre será protagonista. E o nosso sensível e experiente gestor pode então desempenhar o seu principal papel: ser o catalisador dessa transformação em que todos os elementos de apoio e ferramentas de gestão estão disponíveis para servirem ao paciente. E principalmente ele.
Podemos transformar essa proposta de valor numa dimensão cartesiana, estabelecendo normas, parâmetros, indicadores e metas a serem buscadas? Sinceramente não sei. Talvez não. Mas é possível que se um eventual serviço de saúde, principalmente um hospital, atentar para essas reflexões, quem sabe sua porta de entrada ficaria mais cheia? Quem sabe sua taxa de ocupação seria mais adequada? E o que dizer das opiniões positivas de lideranças na comunidade aonde ele se insere? E da satisfação de médicos, outros profissionais e demais colaboradores? E da natural tendência em conseguir acordos de prestação de serviço mais vantajosos, alinhados com a agora melhoria do padrão de qualidade assistencial (ainda que percebido de forma subjetiva), junto aos pagadores? E da crescente curva ascendente de resultados operacionais descolados da sua concorrência?
Afinal, que hospital você quer para o futuro?