Durante o feriado de Carnaval, matéria de Cláudia Collucci, Folha de São Paulo, movimentou o setor saúde:
Hospitais premiam médicos que indicam mais exames
Tendo sido citado, trago algumas considerações adicionais sobre o tema, na intenção de movimentar ainda mais o necessário debate:
1. Quem me conhece sabe que sou um entusiasta do pagamento por performance (P4P). Há estudos recentes, além de opiniões de notáveis do setor, colocando em cheque sua efetividade. Não colocam um ponto final na matéria, definitivamente.
Existe quem propague ou busque soluções únicas, perfeitas e acabadas para sistemas de saúde. Mas jamais encontraram ou encontrarão. O hospitalista também não é.
Construir um sistema de saúde que alinhe incentivos (que sempre existirão) aos interesses de pacientes, é, e nunca deixará de ser, desafio permanente a ser enfrentado. Acredito que o debate público lançado pela Folha é oportunidade ímpar para lideranças do P4P, como meu amigo e também colunista do Saúde Business, Cesar Abicalaffe, mostrarem como é possível moldar um P4P pautado na ética e no compromisso maior com o paciente. E é possível!
2. Dito isto, penso que é para ontem o desenvolvimento de uma plataforma modelo de avaliação de resultados em saúde, que deverá servir ainda para avaliação de desempenho médico. Já há esboços, mas não passaram por pré-requisitos a serem melhor explorados abaixo, bem como carecerá de reconhecimento nacional. Mais amplamente, também atrasados estamos no alinhamento dos incentivos em direção às melhores práticas assistenciais (na minha opinião com espaço, sim, para monetização diferenciada por performance). Ocorrerão através de novos modelos de remuneração, distantes da conta aberta hoje predominante. Do resultado deste trabalho, a parte relacionada aos critérios de distinção médica, deve ser entregue aos gestores hospitalares da ponta. Encurralados como estão, é até injusto que o desafio permaneça com eles próprios. Deve vir em um pacote de medidas sensível à crise vivenciada pelas organizações.
Hospitais atualmente encontram prestadores de serviço com ótimas ferramentas capazes extrair todo tipo de informação para avaliações de desempenho, equipes aptas para trabalhar os dados – empregando ajustes de risco, por exemplo. Ao final, podem apresentar dashboards ou scorecards muito assertivos aos gestores, benchmarks, e muito mais. Mas, via de regra, às unidades hospitalares é oferecida a tentadora sugestão de escolher os critérios através dos quais avaliarão e premiarão os médicos. É isto que precisa ser modificado. Até para proteger melhor bons gestores, de cometerem lapsos éticos. Ou, no mínimo, deve ser transparente.
3. Engana-se quem acha que a solução para a questão está em “gestores éticos”. O furo é muito mais embaixo. Como já escrevi em postagem recente, confundem ética com um gabarito pronto e acessível para os problemas da vida. Equivocam-se. Os problemas da vida, não raramente, escondem-se de nós, e o tal gabarito apresenta-se tarde demais. Como já escreveu Marcia Angell, "lapsos éticos quase nunca são casos de pessoas ruins, tomando atitudes ruins, por motivos ruins. Ao contrário, são boas pessoas, fazendo coisas ruins, por bons motivos". Ou simples falta de reflexão ou conhecimento mesmo.
4. Eu próprio, como coordenador de um grupo de hospitalistas, enfrentei situação que escancara o tamanho de nosso desafio. Co-criei uma plataforma de avaliação de desempenho. Contaminado pela onda da “transparência na saúde”, passei a mostrar todos os resultados ao grupo. Percebi que moldavam comportamento, algo já previamente bem demonstrado inclusive, e que pode trazer resultados muito bacanas. Um dos hospitalistas, sabedor de que ao hospital interessava quantidade de exames, e de que o estavam observando, passou a solicitar mais. Sem nenhuma pressão do hospital ou de sua coordenação. Será a solução menos transparência? Complexo, difícil, não?
Fácil, mas é preciso querer enxergar, é o entendimento moderno de conflitos de interesse, que rechaça veementemente a concepção de pessoas boas versus más (ou pela menos a importância disto), e coloca o foco e, principalmente, as soluções nos sistemas.
5. De acordo com definição clássica (Thompson, 1993), conflitos de interesse é um conjunto de condições nas quais o julgamento de uma pessoa a respeito de um interesse primário pode ser influenciado indevidamente por um interesse secundário. Então basta a possibilidade da influência indevida para existir o conflito, independente da ocorrência ou não de um resultado danoso. Ou seja, o conflito de interesses é uma condição subjetiva, interna do sujeito ou grupo, relacionada a potencial oposição existente entre os diferentes interesses em jogo, criando um risco ou probabilidade aumentada de que a decisão final seja determinada por fatores em oposição aos compromissos manifestos.
A existência desse conflito pode ser consciente, e se expressar na forma de uma decisão deliberada de favorecer interesse não revelado, ou mesmo inconsciente, manifestando-se através de um enviesamento e sob a forma de racionalizações ou de erros de decisão. De fato, na maioria dos casos com que nos deparamos, o conflito de interesses é oculto mesmo para o sujeito que o vivencia, ao menos uma boa parte do tempo, constituindo-se mais em uma verdadeira vulnerabilidade ante uma situação do que um desvio de caráter, menos ainda uma ilegalidade.
Quando Luis Correia, na matéria da Folha, diz que a questão dos excessos de intervenções é mais cognitiva, do que de premiações, provavelmente está atento apenas aos incentivos econômicos diretos para solicitação de exames, e o quanto são de fato incomuns. Entretanto, outras dimensões relevantes dos interesses humanos também devem ser lembradas e valorizadas, tais como diversas formas de incentivos indiretos, como facilitações profissionais dentro da organização. A primeira situação está muito próxima de corrupção, ou já é. A segunda é conflito de interesse na fase ideal de debater, e é cognição pura. É comum. E nos remete justamente a tão necessária revolução cognitiva defendida por Luis Correia, coordenador da Choosing Wisely Brasil, em tantos de seus instigantes textos.
Leitura complementar: A Complexidade dos conflitos de interesse na saúde e os desafios recorrentes.
6. Esta discussão está toda dentro de uma maior: sobre ética empresarial. Sobre como moldarmos os processos internos nos hospitais de um lado pressionados pela crise e lutando bravamente pela sobrevivência, do outro pela necessidade de fazer o que é certo.
Em uma de minhas tantas andanças por hospitais do Brasil, presenciei uma reunião de comissão de longa permanência onde discutiram: "Não receber pacientes oriundos de casas geriátricas ou outros hospitais sem a concordância da chefia, tanto pacientes eletivos como aqueles referidos como emergência". E os critérios abaixo:
A ideia partiu de gestor que admiro muito justamente pela forma com que preocupa-se com pacientes e com as equipes que os atendem na ponta. Sofria muita pressão. Faltava-lhe conhecimento para algumas críticas. Lembrou Marcia Angell: até mesmo pessoas legais perdem-se nos malabarismos da gestão hospitalar. Foi um lapso ético. De uma pessoa predominantemente ética.
Houve resposta imediata: “vários artigos do Código de Ética Médica regulam as questões de não receber/atender pacientes em situações de agravo, principalmente em se tratando de emergência”. O assunto ficou pendente.
Na saída da reunião, o gestor me perguntou:
- “Qual a tua opinião?
- “Não dá para escrever aquilo”
- “Se não dá para escrever, não dá para fazer”. E assim ele encerrou o assunto, dando a volta por cima.
Por trás da ideia, estavam tentando restringir acesso a um perfil de paciente que não dá lucro para o hospital, e ainda tem risco de virar morador - aí sim um desastre total. Mas os tais “pacientes-problema” são muitas vezes produto de assistência previamente mal feita pelo próprio hospital que agora quer negar. A cadeia de eventos é muito grande, e talvez o gestor sequer tenha ligado uma coisa à outra. Seria importante ainda evitar critérios que utilizem de ítens como readmissões, que, em parte, podem estar relacionadas à uma assistência anterior iatrogênica ou à uma transição do cuidado inadequada. Mesmo quando não ocorre, podem simplesmente dizer respeito a pacientes muito vulneráveis e necessitados, candidatos eventuais a cuidados paliativos exclusivos, mas que merecem seu lugar no sistema, ou não?
7. Chamou-me muita atenção comentário de leitor da Folha:
“Essa reportagem está com cara de ser patrocinada pelos planos de saúde. Eu já ouvi que os planos pressionam os médicos com cotas máximas para solicitar procedimentos sob pena de descredenciá-los... Se isso é verdade eu não sei, mas não duvidaria”.
A preocupação dele é mais do que legítima. Racionamento pode ser um problemão. Além disto, acontece de um mesmo procedimento ser empregado demais em determinada população e não estar sequer disponível à outra da mesma área. No Brasil, muitos pacientes não têm acesso à radioterapia. Depende, ao final, de fatores que discriminam quem você é, sem levar em conta sua doença ou indicação. Há, paralelamente, emprego excessivo e potencialmente danoso deste e outros tratamentos oncológicos. Subutilização e sobreutilização devem ser pensadas em conjunto, pois somente o equilíbrio garantirá um sistema de saúde justo e respeitoso, seja ele público ou privado.
Considerações finais:
Precisamos repensar nosso sistema, sair do fee for service, testar alternativas, buscar diferenciação por resultados. Errar, se for preciso.
Só há um caminho para surgirem critérios de avaliação de desempenho médico adequados em larga escala, venhamos a remunerar por performance ou não. Nele, hospitais, operadoras/planos de saúde e médicos devem enxergar-se como um banquinho de três pernas, onde, se uma quebra, cai o banco, caem todos. Aliás, são esse banquinho de três pernas! Precisam pensar juntos os programas de incentivos. É fundamental ainda a participação de representantes de pacientes. Somente assim o referido equilíbrio será possível, falando-se em uso racional de intervenções em saúde. Neste caminho, a transparência será o alicerce principal. E forte ênfase deve ser dada nas questões cognitivas apontadas ao longo do texto.
A isonomia entre membros do Corpo Clínico, da mesma especialidade inclusive, pode (e defendo que deva) ser quebrada. Mas, se os critérios não forem públicos, a chance de estarem errados é grande. Se os hospitais não puderem falar deles quando procurados pela Folha ou outro jornal, muito provavelmente não devem existir.
Por fim, ainda que a questão do conflito de interesses possa ser abordada de uma perspectiva moralista e inculpadora, isso implicaria em ignorar todo o conhecimento acumulado sobre os processos cognitivos e decisórios humanos. A diferença entre essa perspectiva e outra menos inculpadora, e mais preemptiva, está no foco das mudanças: se no indivíduo, ou nos sistemas. Uma atitude não punitiva em face das limitações inerentes à natureza humana não implica em isenção de responsabilidades individuais, mas seria a abordagem preferencial para modelamento dos sistemas, quem sabe do pagamento por performance (P4P).
Enfrentar isto tudo é tarefa inarredável. Falar do assunto sem medo é a primeira etapa. Posso ter cometido falhas analíticas ou outros equívocos, até pela velocidade ao gerar o texto, numa corrida para não esfriar o debate, entre compromissos represados pós-Carnaval. Mas o importante agora é ausência de omissão. Entremos todos de cabeça na discussão e instiguemos um sistema de saúde melhor para os brasileiros.