O Brasil vem progredindo de maneira notável nos padrões de qualidade assistencial dentro das unidades de prestação de serviços em saúde. Dentro da perspectiva histórica, é inegável que houve avanços consideráveis nesse quesito, partindo da compreensão do que vem a ser fundamentalmente um bom padrão assistencial. Este, por sua vez, foi suportado por ampla literatura mundial e sacramentado através de iniciativas inovadoras de alguns prestadores de serviço públicos e privados, mostrando a viabilidade do processo e suas principais repercussões na prática, tais como segurança do paciente, melhora da logística interna e redução de custos, sem contar outros incontáveis benefícios.
A prática de aferição e certificação da qualidade assistencial, mais conhecido como Processo de Acreditação, foi criada e se desenvolveu para cada vez mais incentivar prestadores a se adequarem a esses referidos padrões, sem perder sua autonomia e seus valores institucionais. Mais recentemente, vêm desempenhando um papel adicional na medida em que a posse de um Selo de Acreditação tem sido considerado um possível mecanismo de diferenciação no pagamento por serviços, incentivando, dessa maneira, a concorrência entre os prestadores e seus pares.
O complexo médico-industrial, a despeito de suas idiossincrasias (e que fogem ao escopo desse texto), continua vivo e pujante: se há um setor que não aparenta arranhões, esse é, sem dúvida, os provedores de insumos, desde saneantes até tecnologia de última geração. Como dito em outros textos, somos bastante acríticos na incorporação de tecnologias de alcance e benefício duvidoso, travestidas de medidas que pretendem gerar impacto e postas em práticas muitas vezes por pressões de grupos de interesse ou pela falsa concepção do que vem a ser diferencial competitivo.
Já os profissionais de saúde, e aqui me prendo à classe médica, parece vegetar sob um estado hibernal que vez ou outra é quebrado por palavras de ordem contra planos de saúde ou contra decisões políticas ou administrativas que possam vir a abalar sua zona de conforto. Aparentemente, as coisas vão bem por aqui, e a despeito da choradeira geral quando o assunto é salário, ninguém está deixando de receber seus vencimentos, e estes muitas vezes condicionados em valores absolutos à capacidade do profissional superar seus limites físicos através de jornadas que às vezes desafiam a razão. Não raro quem sofre com o esgotamento do médico é o paciente aos seus cuidados. É assim que nós somos, e não há dispositivo legal que se contraponha a essa prática.
Confesso que meus conceitos, que já não pactuavam muito com esse nosso sistema da forma como ele é, e que insiste em se mostrar cada vez mais iníquo frente aos seus desafios mais elementares (e estamos falando de bandeiras que estão superando uma década de discussão), definitivamente sofreram uma profunda necessidade de re-elaboração recentemente.
Estive em Havana, Cuba, no mês de janeiro deste ano. Foi uma visita que teve diversos propósitos, inclusive de turismo (recomendo, por sinal). Mas um dos principais objetivos foi sair em campo para entender um pouco do por que o sistema de saúde cubano é tão bem falado, em seus diversos níveis hierárquicos, e com indicadores de saúde tão consistentes. Mais que isso, como professor da área, queria conhecer de perto a Universidade de Havana, o curso de Medicina da mesma e algumas minúcias relativas à formação profissional do médico daquele país. Já como intensivista, estava muito curioso a respeito de como as UTI’s de lá funcionam, com embargo americano e tudo o mais.
Devo esclarecer de antemão que informações dessa natureza não são confiáveis aqui no Brasil, seja lá quem as produz, brasileiros ou não. O que sabia, e que talvez muitos também o saibam, eram notícias horripilantes acerca do modelo assistencial e formador na ilha de Fidel, lado a lado com depoimentos emocionados de pessoas assistidas pelos profissionais cubanos nos países aonde seus profissionais prestam serviço, inclusive, e a meu ver de forma previsível, no nosso país. E os indicadores de saúde naquele país falam por si mesmos.
Não há nenhuma pretensão em expressar aqui opiniões pessoais a respeito do que vi ou escutei. E não quero aqui condensar as conclusões a que cheguei depois desses vinte dias em contato com aquele país. Isso exigiria um espaço muito, muito maior. Mas de uma coisa todos podem ter certeza: foi fundamental estar lá e ver com os meus olhos como as coisas são feitas. A partir dessa constatação, me sinto na obrigação de informar que sem nenhuma dúvida estamos assumindo uma postura bastante vergonhosa, para ficar num termo mais brando, ao afirmar e tomar como verdades coisas que de fato não existem, veiculadas por fontes de informação na mídia não parecem estar a par do que de fato ocorre.
Refiro-me especificamente, e em primeiro lugar, ao profissional cubano, principalmente o médico. Pelo que pude ver e ouvir através de vários contatos feitos, alguns de peso inclusive, o médico cubano é bem formado. Aliás, muito bem formado. Sua formação é de cunho generalista fundamentalmente, sendo facultada ao mesmo a especialização através de programas de Residência Médica, assim como no Brasil. A principal diferença é que, apesar de existirem programas em todas as especialidades médicas (e a maioria dos profissionais o fazem), a especialidade chamada Medicina de Família é muito valorizada e respeitada. Os motivos pelos quais isso ocorre tem a ver com planejamento central do Ministério da Saúde, com a realidade sanitária local (a população é pobre), acesso à possibilidade de prestação de serviços fora do país (assegurando uma renda maior) e sentido patriótico de bem estar coletivo (sim, isso existe lá!). Importante ressaltar também que o curso de Medicina é feito em seis anos, e não em quatro, como alguns meios de comunicação maldosamente vinham propagando.
Quanto aos demais especialistas, não me pareceram em nada ficar devendo aos nossos. E com relação aos centros médicos e hospitais, tive uma impressão muito boa: não há filas nos corredores para atendimento, não há macas pela emergência, não há falta de leitos e não há falta de profissionais. As instalações não são suntuosas, mas são limpas e bem organizadas. Os Hospitais Gerais - e são vários - atendem a todas as especialidades, sem exceção, destacando-se em uma ou outra especialidade de acordo com o local. E, pasmem, os médicos trabalham, quando não estão de plantão, das 8:00h às 17:00h. Todos, sem exceção, e todos os dias.
Existem problemas na prestação dos serviços, como em todos os países do mundo, mas no que tange ao modelo assistencial e o alcance de suas metas de prover saúde e bem estar para a sua população e também para as pessoas de outros países, parece difícil negar que em Cuba algo de bom e eficiente não esteja sendo feito. Contra fatos não há argumentos: os médicos cubanos vêm obtendo o reconhecimento de mais de uma centena de países como um serviço que, no geral, atende e supera expectativas. Nós também temos muitos bons profissionais que fariam a diferença pelo mundo, mas que não se interessam sequer em ocupar os espaços dentro do próprio país.
Importante frisar o termo “em geral” porque num conjunto de tantas pessoas, um ou outro podem ter desvios de comportamento ou mesmo não estarem à altura da nobre função de cuidar, seja por despreparo técnico ou de caráter. Nada diferente de nossos profissionais ou de profissionais no mundo todo, posso assegurar. Alguns frisam que muitos destes podem se utilizar desse artifício para fugir de seu país ou simplesmente desistir. Entretanto, os 0,2% de desistências desses cubanos contrasta com os 8,0% de brasileiros que adotam essa prática, dentro do Programa Mais Médicos, após três anos de implantação.
Nesse campo de debate ao nível da atenção básica, não é necessário ser um especialista para perceber que nosso país deveria ter um planejamento e orçamento mais robustos para populações mais carentes. Em um país que pede no jantar camarão na moranga onde só tem carne seca com farinha deveria, pelo menos nesse aspecto, fazer mais do que divagar em iniciativas sem futuro ou promessas que não serão cumpridas.
Após essa viagem eu passei a pensar mais seriamente em outros cenários, nos quais decisões políticas possam vir a querer ampliar os bons e inegáveis resultados do Programa Mais Médicos, trazendo profissionais estrangeiros (e dentre eles cubanos) para ocupar também unidades de saúde de níveis hierárquicos superiores, tais como policlínicas e hospitais. Nosso país dispõe de 6701 hospitais (CNES, jan/2016), e destes, 2010 são públicos, que respondem por aproximadamente 68% dos leitos hospitalares disponíveis, pulverizados pelo país e na imensa maioria com baixa capacidade resolutiva e baixíssimas taxas de ocupação, por razões relacionadas a pouco investimento, carência de serviços diagnósticos e terapêuticos auxiliares e, principalmente, falta de médicos. Disso resultam serviços obsoletos, populações desassistidas para situações de doença resolvíveis em nível intermediário de complexidade, sobrecarga nos hospitais regionais de referência (com suas filas de ambulância), insatisfação dos cidadãos e ineficiência do sistema.
Excluindo os incontáveis aspectos adicionais e discutíveis relacionados a uma decisão de tal magnitude, me pergunto: esses profissionais que vêm de fora, que detém conhecimento de saúde básica, somado a outros tantos com conhecimento técnico em especialidades, poderiam prestar um serviço melhor à população mais pobre e distante dos grandes centros, que sofrem com a ausência de profissionais, em nível secundário ou mesmo terciário? E nas cidades maiores, que também apresentam lacunas de acesso e resolutividade pela falta de profissionais (brasileiros) interessados em ocupá-las? Qual seria o impacto nos indicadores de eficiência na gestão desses hospitais? E o que diriam os cidadãos nos grandes centros urbanos brasileiros, apertados até o pescoço com uma mensalidade de plano de saúde cada vez mais impagável, se de repente se depararem com uma assistência tão boa em hospitais, que não sintam mais a necessidade de pagar uma medicina suplementar? Se olharmos com atenção, talvez não seja um passo tão grande nem tão distante assim. Basta seguir a lógica inaugurada pelo Programa Mais Médicos, que até a sua implantação ninguém deu muita bola.
Continuo insistindo na tese de que a grande transformação na saúde será através de diferenciais assistenciais que envolvam seu objeto de maior atenção, o paciente (internado em hospitais, assistido em outras unidades ou em casa), de forma diferenciada, única, trazendo para sua ação uma abordagem humanística e integradora que facilmente seja transmutada em empatia, confiança e solidariedade. É possível construir um profissional com esses atributos? Creio que sim. Agora creio mais ainda. E pode ser que talvez nem uma transformação dessa natureza resulte em um amadurecimento pleno de todos os elos da cadeia assistencial, que valorize a saúde em detrimento da doença, que foque o indivíduo doente dentro de um contexto individualizado e que priorize seu modo de vida, que cimente as bases para uma vida mais digna e cidadã, e que estabeleça em definitivo o conceito de hierarquização e eficiência na medicina hospitalar. Nada disso é feito em nosso país, salvo algumas exceções, a despeito de incontáveis discussões sobre o assunto.
Abraçando essa causa, talvez nem precisemos trazer profissionais de fora para nos dar o exemplo.
E nem seja necessária uma revolução.