Estou tendo o privilégio de acompanhar a implantação do Sistema S4SP nos hospitais da administração direta do Governo do Estado de São Paulo.
Há alguns anos, no início do projeto, postei aqui no SB que o S4SP seria “um divisor de águas” na gestão da saúde pública, e aos poucos ele vai tomando corpo apesar das enormes dificuldades que envolvem a mudança de processos e de cultura em hospitais públicos.
Muito pouca gente domina “as entranhas” dos processos hospitalares, especialmente a integração entre os processos assistenciais, processos de retaguarda assistencial, e processos de retaguarda administrativo-financeiras. Posso afirmar isso com muita convicção porque também tenho como privilégio a interação da comunidade que se relaciona comigo discutindo o Modelo GIPH.
O projeto S4SP é composto de um conjunto de módulos de sistemas que tratam desde os processos de atendimento de pacientes (internação, pronto socorro, ambulatório e SADT) até os processos de compras e controle dos estoques, passando pela dispensação de medicamentos, prontuário eletrônico, etc. Tem como maior diferencial o fato da integração nativa com os sistemas do Governo do Estado (SIAFEN, SIAFISICO, etc.).
Pude diagnosticar o progresso da implantação em dezenas de hospitais na Capital, Grande São Paulo e Interior, e inclusive opinar sobre a oportunidade de implantação em outros hospitais que ainda não foram abordados pelo projeto. A dificuldade na área pública é enorme, mas como tudo que se planeja e envolve as pessoas certas, o resultado acaba acontecendo.
Uma figura chave para a implantação tem sido o diretor executivo. Me permita esquecer um pouco o projeto S4SP e abrir parênteses para comentar sobre a importância do diretor executivo para os hospitais públicos .... “(“.
A realidade da saúde pública é cruel. Um monte de leis e regras para tentar fazer as coisas andarem, não haver erro, e evitar descaminhos. Sou bem cético a respeito: na prática nada disso adianta – se o Direx “for do bem” e estiver motivado tudo corre bem, caso contrário ele detona qualquer tipo de “controle tecnocrata” e nada acontece.
Conheço alguns dos melhores administradores hospitalares brasileiros – todos têm virtudes e defeitos, mas têm em comum a vocação da licitude e do propósito de fazer as coisas funcionarem. Alguns privilegiam o relacionamento, outros a capacitação, outros o controle da qualidade e dos processos: e no fim conseguem seu objetivo que é maximizar os serviços de saúde minimizando o consumo de recursos humanos e materiais.
Mas conheço alguns dos piores também. Chegam de manhã e começam a reclamar, e passam o dia reclamando de tudo sem fazer nada para melhorar alguma coisa. Seus subordinados aprendem com ele a reclamar de tudo também, porque ele forma o que chamo de “clima do negativismo coletivo” que não leva a nada, a não ser tornar a estrutura cada vez mais ineficiente. Havia um desenho animado antigo em que uma hiena, que deveria sorrir porque “a lenda diz que as hienas sorriem”, passava todas as histórias dizendo “não vai dar certo Lipe” – é muito fácil identificar um “Direx Hardy”, e o dano que ele causa para a saúde pública.
Todos têm razão nas reclamações – não discordo – mas a questão é: sobrou tempo para alguém fazer alguma coisa para melhorar ? Passam o tempo fazendo relatórios demonstrando que as coisas estão erradas e não empregam um único minuto do dia para se reunir com os responsáveis e tentar desenhar alguma melhoria.
Desabafo feito, fecho os parênteses e volto ao projeto S4SP ... “)”.
Pude diagnosticar facilmente o progresso ou retração da implantação nos hospitais dependendo de alguns fatores, excetuando a questão do Direx já comentada.
O problema da conformidade com sistema anterior ... nas aulas de Informática e Processos (Modelos GIPH e GCPP) sempre brinco que “Deus fez o mundo em 7 dias porque não tinha sistema anterior – se tivesse sistema anterior Deus teria demorado uns 7 meses e Adão teria se recusado a assinar o termo de aceite do mundo criado para ele”. Este fato é implacável com o projeto S4SP. Dá trabalho fazer as pessoas entenderem que ele não é um “sisteminha novo” que está substituindo o “sisteminha antigo que controla isso ou aquilo”: é um grande sistema que inclusive extrapola os processos internos do hospital, integrando processos da Secretaria da Saúde, e sistemas de prestadores de serviços hospitalares (terceiros). As pessoas tendem a perder um tempo enorme pedindo para “mudar a cor do botão”, questionando “porque tem que dar 3 cliques se no sistema anterior dava-se 1 clique só” ... um monte de coisas que são relevantes para o usuário final na ponta, que evidentemente não consegue enxergar que o novo processo exige mais controle porque é mais abrangente, e não consegue ser tão simples quanto digitar algo como se estivesse em um editor de textos. Nos projetos em que o S4SP quebra esta barreira e as pessoas conseguem “enxergar o ganho” para todo o hospital e o ritmo da implantação muda completamente: depois de entender a razão das coisas raramente as pessoas querem voltar ao “sisteminha anterior” !
Como nunca existiram diretrizes únicas de gestão hospitalar na rede pública, cada hospital seguiu o caminho que considerou mais adequado à sua realidade. Algumas diferenças do hospital com o resto (raras) são muito boas para o sistema de saúde, mas a maioria não. Se citarmos como exemplo o processo de logística interna:
- Em alguns hospitais o Almoxarifado é o distribuidor de tudo ... em outros ele transfere para uma central de distribuição interna, ou seja, recebe e armazena “no atacado” e envia para uma outra área interna que cuida “do varejo”;
- Em alguns hospitais os medicamentos passam pelo almoxarifado antes de chegar na farmácia ... em outros entram diretamente na farmácia;
- Em alguns hospitais existe distribuição de medicamentos para pacientes ambulatoriais ... em outros não;
- Em alguns a farmácia funciona 24 horas ... e outros não.
Os sistemas aderem em qualquer destes exemplos e pode perpetuar a cultura do hospital, mas se o hospital resolver aproveitar a implantação do sistema para se adequar às melhores práticas do mercado hospitalar a implantação será mais lenta, porque haverá o grande esforço de ajustar espaço físico, pessoas e, principalmente, a cultura. Mas evidentemente a demora será compensada pelo ganho que o hospital terá ao se adequar às melhores práticas.
O projeto forçou a atualização tecnológica dos hospitais que estavam com a infraestrutura defasada. E vai promover este benefício nos hospitais que ainda não foram abordados pelo projeto – ao planejar a implantação a equipe avalia a necessidade de adequação da rede interna, do ambiente de conectividade, dos serviços de suporte e da equipe de TI local, e propõe o ajuste para que a Secretaria da Saúde viabilize. Como o ajuste tem base em um projeto estruturado, a Secretaria da Saúde tem muito mais segurança em aprovar – não se trata da iniciativa justificada de um CIO para aquilo que ele acha que deve ser feito, mas da necessidade de viabilização de um projeto estratégico. Não que o CIO não saiba o que o hospital necessita – a questão é que entre ter segurança no que o CIO indica, e o que os requisitos de um projeto institucional define, evidentemente é mais seguro priorizar o segundo cenário do que o primeiro.
Eu poderia continuar escrevendo horas sobre este projeto que tenho a honra de participar e está fazendo história na saúde pública do Estado de São Paulo, mas vou encerrar apenas enfatizando alguns benefícios esperados e indiscutíveis.
Nos hospitais que já avançaram significativamente os Direx conseguem ter visibilidade em tempo real dos indicadores mais importantes para gestão. Um painel de indicadores pode ser acessado em tempo real porque a arquitetura dos sistemas é 100 % web, inclusive com os servidores hospedados na nuvem e não nos próprios hospitais. A própria secretaria consegue acompanhar os indicadores dos hospitais em tempo real ... antes não tinha nem mesmo acesso ao sistema. Uma vez bem controlado o estoque nos hospitais via sistema, a Secretaria consegue visualizar a posição geral de estoques da rede de hospitais – imagine onde a visibilidade em tempo real dos estoques de todos os hospitais poderá levar a Secretaria no futuro !
Em alguns deles o prontuário eletrônico já é realidade: receituários, prescrições, resultados de exames, evoluções multidisciplinares e registros de diagnósticos e procedimentos estão “no computador”, dando maior segurança e qualidade ao processo assistencial de centenas de milhares de pacientes que se utilizam da rede pública de saúde. Em nenhum deles o papel foi abolido, como também não foi abolido em 100 % dos hospitais públicos e privados que conheço (e modéstia à parte conheço centenas deles, inclusive os mais famosos que fazem propaganda dizendo que não existe mais prontuário em papel ... e existe!).
Já é possível afirmar que a mobilização de funcionários de um hospital informatizado para outro é muito mais simples. Como o sistema é o mesmo, o esforço para treinamento é menor, e ele pode manter a mesma rotina de trabalho se for transferido de um para outro sem muita dificuldade de adaptação.
E, mesmo que a secretaria da saúde possa não ter pensado nisso, o sistema dota a rede de hospitais de um padrão único de atendimento que pode abrir a porta para certificação em programas de garantia da qualidade coordenada diretamente por ela!
Não gostaria de encerrar deixando a ideia de que acho tudo muito lindo e maravilhoso, que os hospitais públicos são equipamentos de primeiro mundo, e que o projeto S4SP é um exemplo de melhores práticas de informatização hospitalar – não se trata disso.
A mensagem é a de que o projeto caminha ... mesmo que não seja no ritmo que se poderia esperar, e mesmo com enormes dificuldades de mudança de cultura e processos ... os resultados vão aparecendo.
Conheço outros dois projetos de informatização em hospitais públicos que estão “patinando” há anos e não se viabilizam nunca, principalmente porque o planejamento não contou com a participação de pessoas que realmente conhecem “as entranhas dos processos internos dos diferentes hospitais públicos e privados brasileiros” e pensam que implantar o sistema em um é a mesma coisa que implantar no outro ... “um pecado” ... infelizmente !
Quem me conhece sabe que tenho uma convicção antiga (desde a época que era CIO da Furukawa, mesmo antes de ser CIO do Sírio Libanês), e esta é mais uma história que a reforça:
- Não existe sistema ruim;
- Existe implantação mal planejada, que não envolve quem realmente conhece o negócio e os realmente envolvidos e comprometidos com os processos e os resultados que o sistema abrange.