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90 dias no garimpo Parte 2

"...o fato é que não consigo explicar como nada aconteceu comigo. Um dia, então, bateu a lucidez: como é que ninguém me matou até agora?"

(Leia a primeira parte dessa história aqui]

Garimpeiro é um sujeito vaidoso: ele ganha dinheiro e

precisa gastá-lo. Ou melhor, mostrar que pode fazê-lo.

Em Abunã, o povo contava histórias incríveis de gente que

conseguira acumular riqueza e partir. Uma vez, soube de um homem que teria

comprado um avião e, pouco tempo depois, morrido em um acidente, ao tentar

pilotá-lo. Se é verdade, não sei. Mas posso dizer que a maioria das pessoas

perdeu tudo o que conseguiu, em geral sem sair do povoado.

Existia um desejo comum de ostentação, só que pouco os

homens tinham a exibir no garimpo além de futilidades - basicamente, álcool e

garotas de programa. No fim do dia, tanto à beira do rio quanto nas balsas, a

confusão tomava conta: era um tal de um pagar bebida para todo o mundo aqui,

outro armar uma discussão ali, defendendo sua honra até a última

consequência... Brigas faziam parte do cotidiano e, não raramente, assassinatos

também.

Uma das modalidades de matar era cortar a mangueira de ar do

mergulhador enquanto ele trabalhava no fundo do rio. Quando não morria lá

mesmo, tentava retornar à superfície rapidamente e, com isso, sofria problemas

de descompressão. Sem falar nas mortes decorrentes de acidentes do ofício.

Certa vez, presenciei um deslizamento de terra, resultado da exploração

descontrolada e incessante do mesmo local. A mata intensa caiu sobre as balsas

acumuladas e soterrou vários garimpeiros.

No garimpo, conheci o ser humano em estado bruto, sem

qualquer lapidação cultural e educacional. E nesse mercado selvagem, porém

intenso e lucrativo, resolvi fazer negócios a partir da compra e venda do ouro,

circulando semanalmente entre Abunã e Porto Velho, em busca das melhores

cotações e margens de lucro.

Durante três meses, mantive em mente a determinação de

conquistar minha independência financeira e, ao mesmo tempo, proteger minha

vida, como um bicho que instintivamente zela por sua sobrevivência. O risco já

começava na negociação: eu tinha que maçaricar o ouro na hora, para provar a

pureza da mercadoria, além de me colocar no lugar do outro e garantir que a

minha mensagem fosse compreendida, sem enganos.

Se eu já era bom de comércio, lá me tornei mais do que um

vendedor habilidoso. Aprendi a lidar com a iminência contínua de ser morto ou,

no mínimo, rendido em um assalto, perdendo tudo o que havia conquistado.

Aprendi a interpretar e me relacionar com diferentes pessoas, e como tratava

muito bem a todas elas, sempre fui querido em Abunã. Ainda assim, o fato é que

não consigo explicar como nada aconteceu comigo. Um dia, então, bateu a

lucidez: como é que ninguém me matou até agora?

Era hora de voltar para São Paulo, com a meta cumprida: três

meses depois, eu havia acumulado não só a quantidade suficiente para comprar

meu carro, mas o primeiro grande dinheiro da minha vida. Por isso, sou

profundamente grato ao garimpo.

Ainda hoje, guardo lembranças definitivas de Abunã: a vida

pesada, ao mesmo tempo flutuante; a alegria, mesmo entre a selvageria; e a

exuberância da floresta, essa uma verdade sem variáveis. As pessoas tinham um

sonho. Estavam ali a batalhar por sua autossuficiência. Quem sabe, uma hora,

acertar e achar muito ouro. Quando parti, não tinha caso algum para contar de

gente que vingou. Mas, na falta de exemplos, eu estava decidido a ser o

primeiro.