As relações mais felizes são aquelas baseadas na mútua
incompreensão.
Os serviços de saúde em geral são realizados através da construção de relacionamentos, instituídos vertical ou horizontalmente, nos quais o bem comum da assistência ao paciente passa a ser o objetivo de todos os seus atores. No caso dos hospitais, é impossível dissociar o alcance de bons resultados para o tratamento das condições de saúde dos indivíduos se as mesmas não estiverem fortemente estabelecidas, seguindo uma razão exponencial: relações bem azeitadas se transformam em valor para o paciente numa proporção muito maior que a esperada. O paciente, ao ser atendido ou internado numa organização dessa natureza, passa a ser o centro de uma cadeia de ações interligadas, concomitantes ou seqüenciais, às quais mais modernamente nos acostumamos a chamar de processos, herdando a terminologia das demais organizações. Como exemplo, um indivíduo que vai ser submetido a um tratamento dentro do hospital interage direta ou indiretamente com os médicos que lhe assistem, com a equipe de enfermagem que lhe dá suporte, com outros profissionais que eventualmente participem do atendimento, da farmácia que dispensa as medicações, do laboratório e setor de radiologia que fazem os exames, do serviço de hotelaria e manutenção que lhe provêm a melhor comodidade e funcionalidade durante a sua permanência, da copa que lhe envia suas refeições e por aí segue a lista.
Esse mosaico de ações confere aos serviços de saúde em geral, e em particular aos hospitais, características que, juntamente com outras tantas peculiaridades, os tornam organizações diferentes e repletas de desafios para os administradores. Seria de se perguntar o porquê da existência dessa sincronia, algumas vezes nem tão síncronas assim, ser como de fato é. Não é uma resposta muito fácil, mas devemos levar em conta que a consolidação do modelo hospitalar de assistência (na forma mais modernamente concebida, ou seja, a partir do século XVIII), vem evoluindo ao longo do tempo na medida do aumento da percepção de necessidades dos usuários coalhada de interesses diversos, sejam eles de natureza estrutural, tecnológica ou de perfil assistencial. E a evolução não para por aí: nunca antes se discutiu tanto o papel dos serviços de saúde no fornecimento do seu produto final para o paciente. Inovações, teorias e novos modelos de fazer a coisa surgem com uma velocidade tão grande que nem conseguimos acompanhar em tempo real: quando travamos contato, outra já a superou. Em todos eles, palavras como equipe, sintonia, qualidade, multidisciplinaridade e liderança, para ficar apenas nesses exemplos, servem para dar a sustentação conceitual para aquilo que se convencionou chamar de modelo de gestão hospitalar em seu sentido mais genérico. Aqui se observa uma reciprocidade verdadeira, invisível, intrínseca, pulsátil e viva, e que faz com que toda a organização cresça ou não, na dependência da intensidade com que o corpo diretivo e de gestores perseguem os valores impressos no DNA da organização.
Mais recentemente, novas formas de arranjo organizacional tem procurado estabelecer uma relação um pouco mais próxima entre gestores e o Corpo Clínico dos hospitais. Uma delas, genericamente chamada parceria, parece povoar o imaginário daqueles que enxergam no trabalho médico uma parcela razoável de culpabilidade pelo mau desempenho da organização. Seja pelo genuíno despreparo de seus profissionais (e isso também é um sintoma de gestão ineficiente), seja para encobrir as fragilidades de uma gestão incapaz de atender às demandas da organização, é tentador implicar nos custos crescentes da prática médica (que realmente têm um custo elevado em muitos casos) a culpa por uma conta que não fecha.
Através de inúmeras formas, explícitas ou não, a maioria travestida de oportunidade única, as tais parcerias oferecem contrapartidas (a maioria em dinheiro) em troca a uma obediência a certas linhas de conduta que podem vir a desvirtuar uma boa prática médica.
Toda generalização é perigosa, então mais uma vez convém destacar que algumas organizações parecem ter amadurecido a tal ponto que relacionamentos dessa natureza parecem trazer de fato benefícios mútuos, muitos deles através de incentivos não necessariamente na forma de dinheiro. Mas as propostas oferecidas pela imensa maioria dos hospitais e demais organizações, sob a justificativa de trazer vantagens mútuas, não passa de um embuste grotesco e de mau gosto. É feio para quem formula, que na imensa maioria das vezes não tem o conhecimento de causa suficiente para alcançar todas as dimensões de uma prática como é a prática médica, e muito mais feio para quem se sujeita ao mesmo. Mas os gestores da alta administração ou os membros do corpo diretivo/societário ainda não parecem ter se convencido com as experiências alheias.
Não tenho a pretensão de listar as incontáveis formas de acordo que podem criados. Mas ao longo desses anos de observação, leituras e relatos de caso, ao menos numa coisa me sinto confortável em afirmar: nenhuma parceria nesse contexto sobreviveu tempo suficiente para servir de modelo para a melhoria da assistência ou do desempenho organizacional, pelo menos nesse país. Curiosamente, no país aonde a maioria dessas propostas são criadas, desenvolvidas e vendidas como solução na forma de teses, cursos de MBA e livros, também não. Porter, Christensen, Bohmer e outros tantos da Harvard Business School, a maioria não médicos, têm se debruçado na geração de ideias e arranjos que agreguem valor cada vez maior ao paciente, dentro da perspectiva de que a adoção de algumas práticas semelhantes teriam invariavelmente repercussões inexoráveis e de maneira positiva no orçamento das organizações e dos países. E não são poucas as propostas, todas, com uma ou outra exceção, bastante atraentes por sinal.
O Corpo Clínico dos hospitais não está de maneira alguma dissociado dessas reflexões. Ao contrário. Corpo Clínico eficiente, efetivo e eficaz não se traduz em muitos médicos, nem em médicos renomados, de todas as especialidades. Que o digam os hospitais que vem obtendo níveis de excelência em prestação de serviços médicos com a implantação do modelo hospitalista. Grosso modo, boa parte do sucesso da gestão hospitalar no seu sentido mais amplo deve ter como pilar uma assistência à saúde que seja exercida por profissionais que disponham de todos os bons atributos que se espera para o bom desempenho num negócio tão peculiar, acrescido de outro poucas vezes levado em conta: bom senso. É esse atributo que faz com que, dentro da autonomia que a legislação e a atividade-fim intrínseca, secularmente conferida à profissão, ele desenvolva sua atividade de forma liberal, porém solidária; procurando a melhor relação custo x benefício nas suas ações, mas com o discernimento de usar alternativas mais caras se realmente se justificarem; obediente às normas básicas de conduta e atividade profissional de cada organização, e, finalmente, recebendo os incentivos adequados, de tal maneira que se sinta estimulado a manter seu nível de atenção sempre de acordo com as aspirações da organização.
Trocando em miúdos, profissionais bem selecionados, e com os incentivos certos e justos, não se sentem atraídos para acordos diferenciados que privilegiem, teoricamente, ambos os lados. Como não existe relação comercial simétrica perfeita, médicos assim seduzidos logo percebem que os pretensos incentivos não são exatamente aquilo que imaginava. Ou, para consegui-los, talvez tenham que se sujeitar a determinadas formas de agir que podem ir frontalmente às suas noções de ética, justiça e solidariedade.
Que me perdoem os incontáveis entusiastas dessa ideia de parcerias. Mas já houve tempo de observação suficientemente grande para que se chegasse à conclusão de que isso não funciona para a maioria das organizações. Não que em teoria não seja exequível, pelo contrário. Mas, não bastassem as incontáveis diferenças desse negócio para outros, cada organização tem suas particularidades, missão, valores e prioridades. Para muitas, o valor para o paciente é uma preocupação real. Para tantas outras, nem tanto. Outros valores lhe antecedem. E para completar, tal qual o ser humano em geral, nós, médicos, frequentemente somos atraídos pela perspectiva de vantagens adicionais que extrapolam o acordado, o aceitável e o ético. Ou simplesmente deixamos outro agente interferir nessa sagrada relação que comporta o binômio médico x paciente, e mais ninguém. Que o digam aqueles que prestam serviços intermediados por operadoras de planos de saúde e seu comportamento subserviente. Mas isso é assunto para outra conversa.
Médicos desconfiam desse tipo de parceria. Médicos são talhados para serem médicos, nada mais. Até que os currículos das escolas médicas incorporem noções de economia da saúde e gestão, assim será por muito tempo. Gestores não devem ficar traçando estratégias para atrair o médico para o seu negócio, pintando um cenário de perspectivas que levem à falsa sensação de que o médico será um colaborador diferenciado ou um dos donos do negócio. Que obterá vantagens que não existem. O médico não será dono de nada, apenas de sua arte e conhecimento. As queixas de que médicos não são parceiros são atribuídas ao despreparo do médico para colaborar com a organização dentro da perspectiva do gestor. Jamais a organização vai reformular seu agir partido do pressuposto de que talvez ela esteja equivocada.
Talvez esteja chegando a hora de haver uma reflexão acerca desse tema com maior profundidade. Em cada encontro ou evento que participo, escuto nos diversos bate-papos que o Corpo Clínico não colabora, que o médico não é parceiro, que não tem noção do que consome, que não se prende a regras, que reclama muito. Não é chegada a hora de pensar outra estratégia? Buscar no mercado outro gestor, talvez? Capacitar de forma adequada quem está à frente do negócio ou pedir ajuda a quem tem experiência também ajudam. Ser qualificado para exercer um cargo de gestão pode significar ter a habilidade e convencimento necessário para buscar soluções criativas e alinhadas com a realidade de cada organização, desde seu presidente até os níveis de gerência, sem esquecer o gestor médico. Mas reclamar definitivamente não vai resolver. A cabeça do médico, certo ou errado, é diferente da cabeça de quem não é.
A sugestão que deixo é a seguinte: médicos serão médicos sempre, e, salvo exceções, tenderão a não aderir de imediato a qualquer movimento que tente seduzi-lo ou fidelizá-lo na forma de parcerias de natureza indisfarçadamente comercial. Se a parceria surgir, que seja naturalmente, como são as relações intra-organizacionais que se desenvolveram através dos anos, citadas nos início desse texto. O médico não coloca todas as suas fichas num mesmo lugar. Nunca. Não esperem que tenham o mesmo comportamento daqueles que têm um emprego formal.
Do contrário, as conversas nos eventos vão continuar sendo um muro de lamentações sem fim.