Quando a Rainha Vermelha diz para Alice que no País das Maravilhas é preciso correr o máximo possível para ficar no mesmo lugar –e se quiser sair dali ela terá que correr duas vezes mais rápido –, a ficção de Lewis Carroll parece descrever a saga dos tempos atuais. O alto fluxo de informações e o senso de urgência que dão o tom do mercado corporativo hoje provocam nos profissionais a eterna sensação de que é preciso estar sempre em desabalada carreira para ser bem-sucedido. Quando esse êxito é entendido pela conquista dos primeiros postos nas companhias, a situação é ainda mais complicada, principalmente para as mulheres.
A angústia de querer ser o senhor do tempo, onipresente e infalível atinge em igual medida ambos os gêneros nas organizações. A diferença é que elas convivem com outras pressões que extrapolam os muros da empresa. As companhias, por sua vez, organizadas a partir de modelos surgidos nos anos 1950, quando o ambiente de trabalho era predominantemente masculino, ainda estão começando a entender as necessidades específicas do público feminino. Esse contingente já responde por 60% dos profissionais que ingressam nas companhias no Brasil. Muitas dessas jovens olham com desconfiança para esse desequilíbrio entre trabalho e vida pessoal vigente. Manter seu ânimo pela carreira executiva, agora é um grande desafio para as empresas no país.
As 15 executivas eleitas nesta edição da revista Valor Liderança Executivas trilharam um longo caminho para chegar ao alto escalão. Para elas, a realização profissional foi fruto de escolhas nem sempre fáceis na vida pessoal. O prazer em poder fazer o que gostam, entretanto, parece tê-las feito superar possíveis arrependimentos. Segundo as executivas, a nova geração conta com algumas vantagens. Uma delas é a crescente percepção dentro das organizações sobre a importância das características femininas no comando como a intuição e a capacidade de se relacionar. Outra, é que as companhias estão mais dispostas a desenvolver políticas que ajudem essas profissionais a lidar melhor com essa dupla e até tripla jornada, que envolve trabalho, família e estudos.
“Não dá para dizer se as companhias amadureceram ou se apenas acreditam que seja politicamente correto, mas o fato é que essa é uma discussão que está mais presente no Brasil”, diz Betania Tanure, consultora e professora da PUC Minas. As organizações, segundo ela, devem criar condições para que as profissionais possam fazer escolhas, seja para aquelas que acreditam que é melhor encurtar a licença-maternidade em prol do trabalho ou para as que gostariam de aderir a uma jornada de trabalho mais flexível para ter mais tempo para a família. “O que não é possível é existirem políticas discriminatórias.”
Estudo realizado pela consultoria McKinsey com mulheres que ocupam posições de média gerência nas maiores companhias globais mostra que apenas 22% delas acreditam que vale a pena brigar pelos primeiros postos, enquanto 14% das que estão em início de carreira dizem o mesmo. A diretora da consultoria em Nova York, Joanna Barsh, diz que alguns ingredientes minam essa ambição de conquistar o topo das organizações. Um deles é a falta de modelos de líderes femininas nas companhias. No Brasil, apenas 5% dos cargos de presidência de grandes empresas são ocupados por executivas. No restante do mundo, esse porcentual não é tão diferente.
Outro motivo que desencoraja essa disputa pelo poder é que, quanto mais as mulheres amadurecem, existe uma tendência de que adotem uma visão holística sobre a vida. “Elas querem um propósito no trabalho que realizam e também no relacionamento que têm com a família e com a comunidade.” Elas decidem não competir, segundo Joanna, porque temem sofrer ainda mais pressão para equilibrar sua relação familiar com o emprego. Em muitos casos, preferem ficar onde estão. “O modelo da busca pelo poder e realização apenas pelo viés econômico está sendo questionado há algum tempo”, diz Marise Barroso, da Amanco.
As barreiras invisíveis e o chamado “teto de vidro” ainda persistem nas organizações na forma de longas jornadas, reuniões fora do horário comercial, viagens frequentes, entre outras. “Mesmo que as mulheres adotem estratégias para crescer iguais às dos homens, elas ainda ficam para trás em termos de salários e de responsabilidades”, diz Deborah Soon, vice-presidente de estratégia e marketing da Catalyst, ONG que estuda a participação feminina no mundo corporativo. “Existe o mito de que se elas trabalharem mais horas, conseguirão provar suas competências e chegar lá. Isso, porém, nem sempre acontece.” Para Deborah, é necessário mudar o ambiente de trabalho para todos e não apenas para as mulheres.
As empresas erram ao associar longas horas de trabalho com qualidade. Nesse quesito, as profissionais são as mais prejudicadas. “O homem encontra o cliente até as 2 da manhã e pode voltar para a companhia às 6, pois existe alguém tomando conta da família. A mulher não pode fazer isso”, diz Joanna Barsh.
A falta de uma divisão mais igualitária das tarefas domésticas faz com que a balança pese mais para o lado das mulheres. Os cuidados com a casa ainda são, em todo o mundo, uma responsabilidade predominantemente delas. Regina Madalozzo, professora do Insper, ressalta que, no Brasil, os homens com jornadas de até 44 horas semanais dedicam apenas cinco aos afazeres da casa. As mulheres, por sua vez, somam 20 horas a esse expediente. “Desse modo, é muito difícil para elas se sentirem bem-sucedidas nos dois papéis”, diz.
Luiza Helena Trajano, do Magazine Luiza, acredita que as mulheres que ingressam agora no mercado de trabalho contam com mais apoio dos maridos nessa divisão. “Elas vão criar a própria história em um mercado menos desigual.”
O grande drama da maior parte das profissionais está relacionado à maternidade, dilema que começa desde a opção por ser mãe. “Muitas executivas na faixa dos 50 aos 60 anos, que abriram mão de ter filhos pela carreira, fizerem essa escolha sem se dar conta que o relógio biológico estava acelerado e que se tratava de uma decisão irreversível”, diz a consultora Betania Tanure. A diferença para a nova geração, segundo ela, é que agora elas estão mais atentas para esse “tempo”.
Andrea Bertone, da Duke Energy, que mora nos Estados Unidos, optou por não ter filhos e afirma que o importante para as mulheres que agiram como ela é “estarem cientes das consequências de suas escolhas”. Já Camille Faria, da Multiner, precisou adiar a maternidade por questões profissionais. Ela foi mãe de gêmeos aos 38 anos, em setembro, após estar casada por 11 anos. Voltou ao trabalho dois meses depois do nascimento dos bebês e passou a atuar remotamente alguns dias da semana. “Sempre consegui equilibrar a vida pessoal e o trabalho de uma forma não traumática. Vamos ver agora com as crianças”, diz.
A presidente da Standard & Poors, Regina Nunes, tem duas filhas, mas afirma que, se fosse possível voltar no tempo, teria quatro. Ela diz que o equilíbrio após se tornar mãe é sempre tênue. “As coisas se descontrolam rapidamente e de uma forma intensa.” Ela revela que, em alguns momentos, não é possível desmarcar compromissos no trabalho ou em casa. “A gente vai aprendendo a conciliar, mas a única coisa que não consigo arrumar tempo para fazer é a ginástica”, brinca.
A consultora Betania Tanure lembra que, para a mulher, abrir mão das amigas, dos cuidados com a beleza e até mesmo da saúde em prol de uma agenda pesada de trabalho não incomoda tanto quanto a distância forçada dos filhos. “A situação é pior quando eles têm até 10 anos de idade.” Janete Vaz, do Laboratório Sabin, lembra que quando iniciou o negócio ao lado de Sandra Costa, em 1984, sua filha menor tinha apenas 2s anos. “Eu tinha 15 minutos para passar em casa, almoçar em pé e ajudar meus filhos a fazer a lição.” Ela conta que precisou da ajuda de uma psicóloga para lidar com esse sentimento de culpa. Maria Cristina Fiúza, da Dovac, tem a mesma sensação de impotência em relação ao passado com o filho. “Gostaria de ter estado mais presente.”
Embora esse afastamento da família incomode as mães, a maior parte delas não quer deixar de trabalhar. A professora e diretora do Centro Internacional de Trabalho e Família da escola de negócios espanhola Iese Business School, Nuria Chinchilla, conduziu um estudo que mostra que 60% das profissionais com um ou dois filhos podem deixar os empregos. Quando isso acontece, porém, é para procurar empregos com melhores condições de conciliar o trabalho e a vida familiar. A maior parte delas segue para outra companhia ou investe em uma atividade empreendedora. “Elas querem ter mais controle sobre o seu tempo.”
Estudo realizado pela McKinsey com os maiores empregadores do mundo reforça essa preocupação das mulheres em ter um emprego que não comprometa tanto a vida pessoal. Ele mostra que 80% das mulheres com um ou mais filhos não aceitariam um trabalho em que precisassem viajar, independentemente do salário oferecido. Quando a profissão obriga a executiva a mudar de cidade, a mulher precisa administrar, além da logística da mudança, os anseios da família. Sonia Hess, da Dudalina, concorda que, para elas, mudar é mais complicado. “O número de expatriadas ainda é inferior ao de executivos. É muito difícil o marido seguir a esposa.”
Suzan Rivetti, da Johnson & Johnson, diz que um dos momentos mais difíceis da carreira foi quando precisou se mudar para a Argentina, onde viveu por quatro anos. Embora a família concordasse em segui-la, o período inicial de adaptação foi bastante estressante. “Três meses depois da mudança, meu filho de 14 anos disse que queria ir embora”, lembra.
Em muitos casos, ser a número um da companhia pode não significar sucesso nos relacionamentos. Pesquisa conduzida por Betania Tanure com 396 executivas brasileiras mostra que apenas 20% são casadas, ante 80% dos homens. “É uma equação importante do ponto de vista social, que mostra resquícios de uma sociedade machista”, diz. Celina Antunes, da Cushman & Wakefield, conta que seu primeiro casamento, ainda no início da carreira, chegou ao fim por conta da correria na vida profissional. “Não tinha tempo nem para ver os amigos.” Em 1999, ela teve uma filha em um segundo casamento, já como diretora da empresa de serviços imobiliários. O desejo de ter mais um filho, entretanto, foi deixado para trás. “Seria impossível dentro da minha rotina.”
“As empresas deveriam entender que as mulheres podem chegar ao comando por volta dos 50 anos de idade. Muitas na faixa dos 30 anos ainda têm filhos pequenos, o que pode dificultar sua ascensão profissional naquele período”, diz a consultora Joanna Barsh. “Quando entram nas empresas, as mulheres estão em igualdade ou até um pouco melhor do que os homens. Ao longo da carreira, contudo, vão desistindo dos sonhos pelo desejo de ser mãe”, diz Tania Cosentino, da Schneider Electric. Ela conta que sua empresa tem um grupo específico para ajudar as profissionais a lidar melhor com as questões ligadas à maternidade e à vida executiva. “Tem gente que anuncia que está grávida pedindo desculpas.”
Contar com apoio dentro e fora do trabalho sempre é um dos alicerces que ajudam as mulheres que trabalham. Estudo conduzido pelas pesquisadoras Sylvia Hewlett e Ripa Rashid, do Center for Work-Life Policy, com profissionais das maiores empresas instaladas no Brasil, mostra que, embora os maridos não dividam igualitariamente as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, as brasileiras contam com o auxílio de suas mães, sogras, irmãs e tias. O fato de também poderem contratar pessoas para funções do dia a dia contribui para que elas possam trabalhar com mais tranquilidade. “Quando tinha criança pequena, minha mãe e minha sogra sempre me ajudaram. Além disso, tive boas colaboradoras em casa”, diz Maria das Graças Foster, da Petrobras.
Para Ripa, as brasileiras acreditam que dão conta de tudo. Isso significa, em muitos casos, organizar as tarefas domésticas, a rotina dos filhos e até cuidar dos pais. A valorização dos relacionamentos, de todos os tipos, é um traço da cultura latina e uma característica feminina requerida pelas organizações atualmente. “Isso significa, por outro lado, que as pessoas no Brasil acabam passando mais tempo no trabalho”, diz Ripa. Independentemente do tempo dedicado às companhias, o que chama atenção no estudo é a ambição das brasileiras. “Mais de 80% das entrevistadas disseram querer chegar ao topo”, afirma. Para se ter uma ideia, entre as americanas esse porcentual cai para 36%.
O grande desafio das organizações para manter essa vontade de vencer em todos os níveis é conseguir mudar a forma de trabalhar. “As mais jovens não querem repetir o modelo da geração passada, que abriu mão de tantas coisas em favor da carreira”, diz Regina, do Insper. Elas, no geral, estão mais preparadas, possuem um alto grau de educação e não querem abrir concessões. “Nem homens nem mulheres estão dispostos a fazer os mesmos sacrifícios para chegarem ao topo. O mercado de trabalho e as empresas terão de se ajustar para reter esses novos talentos”, diz Ana Zambelli, da Schlumberger.
“As companhias são as instituições mais importantes para as pessoas no mundo atual. No entanto, elas estão agindo de uma maneira insustentável”, diz Nuria Chinchilla, do Iese. A professora acredita que vivemos a era da corresponsabilidade, onde os profissionais precisam ajudar a mudar o sistema o máximo que puderem. As mulheres, segundo a professora, precisam delegar ao máximo as tarefas na empresa e na casa. Patricia Moraes, do JP Morgan, diz que, com o tempo, aprendeu que não pode estar presente em todos os lugares e momentos. Se não pode buscar os filhos na escola, seu marido vai em seu lugar. “As dificuldades sempre existirão. O importante é encarar cada momento como uma oportunidade”, diz Sandra Costa, do Laboratório Sabin. A única coisa que as executivas não podem terceirizar, segundo Nuria Chinchilla, são as suas relações. “Elas podem ser substituídas em tudo, menos como esposas e mães.”
Foto 01: Regina Madalozzo: empresas terão de mudar para reter talentos
Foto 02: Barsh: faltam modelos de líderes femininas nas companhias
Fonte: Valor Econômico, 06/12/11