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Quais os desafios impostos pela judicialização da saúde ?

O paciente de R$ 800 mil

A história do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde

CRISTIANE SEGATTO

Capítulo 1 

Como Rafael Favaro ganhou uma briga jurídica e um tratamento de primeiro mundo

Quem acompanha o tratamento médico de Rafael Notarangeli Fávaro – um rapaz de 29 anos formado em gestão ambiental – se convence de que o sistema público de saúde no Brasil é um dos melhores do mundo. Sábado sim, sábado não, ele entra sozinho no próprio carro, um Meriva financiado, e dirige os 84 quilômetros que separam São José dos Campos de São Paulo. Sente-se tão bem-disposto que nem sequer precisa de acompanhante. É atendido com presteza e simpatia quando chega ao Hospital Sírio-Libanês, a instituição de elite famosa por cuidar da saúde das celebridades e dos figurões da República. No 2o andar, Rafael é instalado numa confortável poltrona de couro para receber, numa veia do braço direito, uma dose do tratamento mais caro do mundo. De acordo com um ranking elaborado pela revista americana Forbes, nenhum tratamento clínico é tão dispendioso quanto usar o medicamento Soliris (eculizumab) para amenizar as complicações de uma forma raríssima de anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), causadora de vários problemas que podem levar à morte. O Soliris ainda não é vendido no Brasil. Importado, vem em pequenos frascos.

O PACIENTE Rafael Fávaro durante tratamento no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Para levar uma vida normal, ele tem  de tomar o remédio  para sempre  (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

Rafael Fávaro durante tratamento no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Para levar uma vida normal, ele tem de tomar o remédio para sempre (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

Cada vidrinho de 30 mililitros custa mais de R$ 11 mil. Em menos de meia hora, a corrente sanguínea de Rafael absorve o conteúdo de três frascos, diluído numa bolsa de soro. São R$ 35 mil a cada 15 dias. Cerca de R$ 70 mil por mês. Mais de R$ 800 mil por ano.

O remédio não cura, mas melhora a qualidade de vida. Se Rafael quiser continuar levando uma rotina normal, precisará receber o Soliris para sempre. Vida normal, no caso dele, significa acordar cedo e trabalhar em horário comercial numa empresa que faz geoprocessamento de imagens de satélite. No final do dia, voltar para casa a tempo de jantar com a mulher, Fabiana, no pequeno apartamento de São José dos Campos emprestado ao casal pelos pais dele. Rafael não precisa se preocupar com o aluguel. Nem com as despesas de seu tratamento. Em cinco anos, os gastos (apenas com o medicamento) ultrapassarão os R$ 4 milhões. Quem paga é o SUS, o Sistema Único de Saúde. Religiosamente. Sem atraso. Como ele conseguiu isso tudo? Como milhares de outros doentes em todo o Brasil, Rafael entrou na Justiça com uma ação contra o governo estadual.

Qualquer um que estivesse na pele dele provavelmente faria o mesmo. Aos 23 anos, recém-casado, ele sofreu uma trombose (formação de coágulos nos vasos sanguíneos que pode provocar infarto, AVC, insuficiência renal ou embolia pulmonar). Poderia ter morrido. Aquele foi apenas o evento mais grave de uma lista de problemas de saúde que o impossibilitavam de trabalhar e viver como um jovem normal. Enfrentou constantes e fortes dores abdominais, uma cirurgia para extrair 21 centímetros do intestino que haviam necrosado, anemia, sucessivas transfusões de sangue. Todo o sofrimento era decorrente da já citada HPN. De uma forma simplificada, pode-se dizer que a HPN é uma anemia crônica causada pela decomposição excessivamente rápida dos glóbulos vermelhos.

Quando recebeu o diagnóstico, Rafael descobriu que pacientes como ele podem ser submetidos a um transplante de medula. É uma alternativa muito mais barata (custa cerca de R$ 50 mil ao SUS) e a única capaz de curar. Apesar disso, nem sequer procurou um doador. Como o tratamento mais caro do mundo estava ao alcance das mãos, considerou que valia a pena optar pela nova droga e evitar os riscos da solução tradicional. O transplante cura metade das pessoas que têm HPN. Mas 30% podem morrer ou ter alguma complicação grave. O Soliris não cura, mas reduz a destruição dos glóbulos vermelhos e os sintomas da doença. Ainda assim, não elimina totalmente o risco de trombose. É por isso que Rafael também precisa tomar anticoagulante para sempre.

Se tivesse de pagar o tratamento do próprio bolso, importar o remédio estaria fora de cogitação. Faria o transplante pelo SUS e teria fé na cura. Várias pessoas, no entanto, o incentivaram a tentar conseguir o Soliris pela via judicial. Um médico de São José dos Campos o encaminhou à capital para ser atendido de graça pelo hematologista Celso Arrais Rodrigues, do Sírio-Libanês. Rodrigues explicou como o Soliris funcionava e indicou uma advogada que entrara com ações contra a Secretaria Estadual de Saúde em nome de outros pacientes. Rodrigues afirma que decidiu cuidar de Rafael e de outros pacientes de HPN sem cobrar nada, por mero interesse científico. Graças a Rodrigues, eles foram incluídos no programa de filantropia do Sírio-Libanês e, por isso, o tratamento inteiro é feito no hospital cinco estrelas. Para o Sírio, o atendimento de doentes como Rafael é vantajoso, porque garante isenção de alguns impostos federais. No final das contas, quem paga o tratamento do rapaz num dos melhores hospitais do Brasil é o contribuinte.

O hematologista Rodrigues diz não ter vínculos com a fabricante do remédio, a americana Alexion. Mas é pago por ela para dar aulas sobre HPN. “A empresa junta um grupo de médicos e me paga para falar sobre a doença e o tratamento”, afirma. Rodrigues indicou a Rafael a advogada Fernanda Tavares Gimenez. Ela é remunerada pela Associação Brasileira de HPN, uma ONG de pacientes que recebe apoio financeiro da Alexion. Fernanda diz cobrar cerca de R$ 5 mil de cada cliente. “No caso do Soliris, não tenho causa perdida”, afirma.

O GESTOR Giovanni Cerri, secretário estadual de Saúde de São Paulo. “A judicialização  da saúde é uma injustiça.  Os mais ricos desviam recursos dos mais pobres”, diz  (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)

Giovanni Cerri, secretário estadual de Saúde de São Paulo. “A judicialização da saúde é uma injustiça. Os mais ricos desviam recursos dos mais pobres”, diz (Foto: Camila Fontana/ÉPOCA)

A estratégia é insistir no argumento da urgência e sustentar que, sem o remédio, a morte do paciente é iminente. “Sou uma advogada que sai da cadeira. Marco audiências com juízes e desembargadores e explico o caso do paciente pessoalmente.” Alguns magistrados se sensibilizam. Outros, não. São minoria. No ano passado, o governo estadual foi obrigado a fornecer o Soliris a 34 pacientes. Fernanda foi a advogada de 28 deles.

“Isso virou uma grande indústria. Alguns médicos recebem estímulos do fabricante(viagens, benefícios) para prescrever medicamentos de alto custo. As empresas financiam as ONGs de pacientes e a isso tudo se associam os advogados”, diz o secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri. O ponto de vista de quem enfrenta uma doença grave é outro. “Todos os brasileiros deveriam ter o atendimento que estou recebendo. Não sou melhor que ninguém, mas sinceramente não sei qual é o critério do governo para decidir quem deve viver e quem deve morrer”, diz Rafael.

Capítulo 2

O que o caso de Rafael ensina sobre a saúde pública brasileira 

Ninguém quer a morte de Rafael. Nem de qualquer outro doente que recorre à Justiça para conseguir outros medicamentos caríssimos.

Mas, quando são obrigados a fornecer remédios caros da noite para o dia (ao preço que o fabricante se dispõe a vender), os gestores do orçamento público da saúde tiram o dinheiro de outro lugar. Com isso, milhares (ou milhões) de cidadãos perdem. A verba destinada à compra de um frasco de Soliris seria suficiente para garantir milhares de doses de anti-hipertensivos e de outros medicamentos baratos que atingem a maior parte da população. Sem interrupções. É preciso reconhecer que priorizar o direito individual em detrimento do direito coletivo tem consequências sobre a saúde pública.

A JUSTIÇA Sessão do Supremo Tribunal Federal. Em 2009, o STF realizou audiências públicas para discutir  a pertinência de ações contra  o SUS. A controvérsia persiste  (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)

Se os pacientes ficarem sem esses medicamentos, o resultado pode ser uma trombose, um AVC, um infarto – todas as ameaças que o Estado procura evitar ao fornecê-los a Rafael. Para salvar uma vida, pode abrir mão de muitas outras. “Os recursos para cumprir as demandas judiciais saem do orçamento público para ações prioritárias, como a prevenção básica de problemas de saúde entre os mais pobres”, diz André Medici, economista sênior do Banco Mundial, em Washington. “As demandas judiciais aumentam a iniquidade do sistema de saúde e diminuem a qualidade de vida dos que detêm menos recursos.”

O maior desafio dos administradores públicos é preservar o direito do doente ao melhor tratamento sem que o Estado se torne perdulário. É preciso lembrar que a saúde no Brasil é subfinanciada. O país aplica em saúde cerca de 8,5% do PIB (considerando os gastos públicos e privados). É pouco. A França investe 11%. O México gasta menos que o Brasil (5,9%), mas tem taxas de mortalidade infantil e materna mais baixas, dois parâmetros importantes para avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada por um país. O Brasil gasta pouco e gasta mal. Diante das verbas limitadas, um bom gestor é aquele que evita o desperdício de recursos ou o investimento em tratamentos inadequados. A pressão crescente das ordens judiciais impede que isso aconteça.

Em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações. Gastou R$ 2,4 milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas do Poder Público (federação, Estados e municípios) são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.

Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista. Os gastos com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz o secretário estadual Giovanni Guido Cerri.

As ações são baseadas no Artigo 196 da Constituição, segundo o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado. Nem todos os juízes, porém, interpretam esse artigo como uma obrigação explícita de que o Poder Público deve prover ao paciente todo e qualquer tratamento solicitado. Muitos, no entanto, dão sentenças favoráveis ao doente. Quando isso acontece, o gestor citado é obrigado a fornecer o medicamento rapidamente. Se ignorar a determinação, pode ir para a cadeia.

O Brasil dispõe de uma relação de remédios regularmente distribuídos no SUS. Ela inclui as drogas necessárias para tratar as doenças que afetam a maioria da população. Além dela, existe uma lista de medicamentos excepcionais – em geral, de alto custo. São drogas novas, criadas para tratar doenças raras ou cada vez mais comuns, como o câncer.

As associações de pacientes reclamam que o governo demora a incluir nas listas drogas caras, mas de benefício inegável. Por isso, defendem ações judiciais como uma forma legítima de pressão. “As ações estão crescendo de forma desesperadora para os governos, mas elas os obrigam a arrumar verbas. Se eles arranjam dinheiro para outras coisas, por que não podem conseguir para remédios?”, afirma Fernanda Tavares Gimenez, advogada de Rafael.

Não há dúvida de que alguns pedidos de pacientes são justos e fundamentados. É verdade também que o SUS deveria ser mais ágil na atualização das listas. Muitos juízes, porém, não têm condição técnica de avaliar se um medicamento importado é melhor que o tratamento existente. Nem se sua eficácia foi comprovada. Nem se é capaz de provocar danos irreversíveis ao doente, além de rombos orçamentários.

A expressão “cada cabeça uma setença” se aplica perfeitamente ao caso dos pedidos de medicamentos. O entendimento sobre o assunto varia entre os magistrados. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma série de audiências públicas sobre a questão – e a controvérsia persiste. No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.

No Ceará, o entendimento foi outro. O Estado foi obrigado a fornecer o Soliris a quatro pacientes. Por enquanto, o governo comprou a droga para dois deles. “O dinheiro necessário para atender os quatro corresponde a 67% do valor repassado pelo governo estadual para a compra de medicamentos básicos do município de Fortaleza inteiro”, afirma Einstein Nascimento, supervisor do departamento que controla os medicamentos de alto custo da Secretaria da Saúde do Ceará. “Esse caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública.”

Nos pequenos municípios, as decisões podem ser arrasadoras. É o caso de Buritama, uma cidade de 15 mil habitantes no interior de São Paulo. O orçamento do município para fornecimento de remédios é de R$ 650 mil por ano. No ano passado, mais da metade foi destinada apenas ao cumprimento de demandas judiciais. Um único paciente pediu na Justiça – e ganhou – uma cirurgia de implante de eletrodos para amenizar o mal de Parkinson. Preço: R$ 108 mil. “Todos os pacientes que entraram na Justiça ganharam a causa. E o Judiciário nem mandou o Estado compartilhar os gastos conosco”, diz Nancy Ferreira da Silva Cunha, secretária de Saúde de Buritama. “Essas ações estão acabando com os pequenos municípios.”

Cada nova ação que chega à Justiça torna explícito o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde. Os que administram orçamentos públicos parecem ter a resposta na ponta da língua. “A saúde pública tem de priorizar o interesse coletivo. Os interesses individuais devem ser bancados pelas famílias. É como o transporte público. O transporte é o mesmo para todos. Quem quiser andar de carro importado tem de pagar esse luxo”, diz Cerri, secretário estadual de São Paulo.

Além dos pacientes, quem mais se beneficia da judicialização são as empresas que fabricam os medicamentos. ÉPOCA procurou a Alexion, empresa americana que fabrica o Soliris. Nenhum representante aceitou dar entrevista. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Em nota preparada pela assessoria de imprensa, a empresa afirmou não comentar suas atividades no Brasil nem o número de brasileiros que atualmente recebem o medicamento.

As ordens judiciais já não estão restritas apenas ao fornecimento de remédios. Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público. Parece lista de supermercado: sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido de milho, farinha láctea...

Os administradores dos recursos da saúde tentam basear suas decisões em avaliações técnicas do custo e do benefício dos medicamentos. Os orçamentos para comprar remédios estão cada vez mais ameaçados pelos preços altíssimos das novas drogas. Ele é justificado, segundo a indústria farmacêutica, pelo investimento de longos anos em pesquisa refinada e pelo universo relativamente reduzido de consumidores, no caso das doenças raras. Grande parte dos custos nesse setor também está relacionada a investimentos vultosos de marketing para promover as novas marcas.

Os preços elevados combinados ao aumento da parcela da população que sofre de doenças crônicas ameaçam o atendimento à saúde até mesmo nas nações mais ricas. “Nos países desenvolvidos, o tratamento do câncer transformou-se numa cultura de excessos”, escreveu o professor Richard Sullivan numa edição da revista Lancet Oncology, publicada em setembro de 2011. “Diagnosticamos demais, tratamos demais e prometemos demais.” Lá, é cada vez mais frequente a pergunta cruel: é justo que o Estado gaste centenas de milhares de dólares para prolongar a vida de um doente de câncer em apenas dois meses?

Capítulo 3

E se Rafael fosse inglês? 

O REMÉDIO O Solíris, empregado em casos  como o de Rafael Fávaro. O remédio evita um transplante de medula  – mas sua distribuição abala  o orçamento público de saúde   (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

O Solíris, empregado em casos como o de Rafael Fávaro. O remédio evita um transplante de medula – mas sua distribuição abala o orçamento público de saúde (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

No caso de doenças raras como a de Rafael, cada país age de uma forma. Na Inglaterra, o governo garante o Soliris apenas aos pacientes que tenham recebido pelo menos quatro transfusões de sangue no último ano. Na Escócia, o governo não paga.

Nos Estados Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A maioria não o garante. O Medicare, o sistema público de saúde para maiores de 65 anos, paga a droga apenas em raras situações. No Canadá, que dispõe de um sistema público de saúde abrangente, apenas uma província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na Argentina, alguns doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde ou os governos.

É possível fazer diferente. Com critérios técnicos, gestores públicos poderiam decidir como aplicar o orçamento da melhor forma possível, para garantir a saúde do maior número de cidadãos por mais tempo. Existem ferramentas matemáticas capazes de comparar os benefícios oferecidos por diferentes formas de cuidado médico.

Para cuidar disso, o Reino Unido criou o Instituto Nacional para a Saúde e a Excelência Clínica (Nice). Em atividade desde 1999, o órgão faz esses estudos e realiza reuniões com representantes da sociedade (pacientes, médicos, indústria farmacêutica) para debater o que deve ou não ser oferecido pelo National Health Service (NHS), o sistema que banca 95% de toda a saúde no país. O que o Nice decide oferecer vale para todos. Isso não quer dizer que os britânicos estejam satisfeitos com os serviços prestados. Os protestos são constantes. Em 2008, doentes de câncer renal fizeram uma grande mobilização para exigir que o governo oferecesse uma nova droga. O remédio só foi adotado muitos meses depois – mesmo assim para pacientes que preenchiam critérios predeterminados. Não há exemplo, no mundo, de país que tenha um orçamento tão elástico que seja capaz de satisfazer todos os desejos. Há sempre um grupo exigindo mais drogas para alguma doença. Mas, pelo menos, as regras podem ser transparentes e universais. “Economias emergentes como o Brasil enfrentam desafios semelhantes aos do Reino Unido: enquanto as doenças crônicas avançam e demandam mais e mais recursos, os dois países têm de zelar pela equidade no acesso à saúde”, diz Kalipso Chalkidou, uma das diretoras do Nice. “Temos trocado experiências com o governo brasileiro e esperamos estreitar essa parceria em 2012.”

Por enquanto, o volume das decisões judiciais leva o Ministério da Saúde a pedir suplementações orcamentárias ao Congresso Nacional. “Poderíamos estar pedindo esse dinheiro extra para melhorar a atenção básica à população”, afirma Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. “Em vez disso, pedimos dinheiro para bancar medicamentos que podem ser danosos ao cidadão que solicitou um remédio que não foi aprovado pela Anvisa. Isso é uma irracionalidade.”

Em outubro, a presidente Dilma Rousseff regulamentou a Lei no 12.401, que estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema público. Ela determina que o SUS não deve fornecer medicamentos, produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais sem registro na Anvisa. É possível que a lei sirva de parâmetro técnico aos juízes. Muitos advogados, porém, acreditam que sempre será possível argumentar com base na garantia constitucional e, dessa forma, garantir o fornecimento do remédio pelo sistema público.

Além de destinar mais recursos à saúde, o Brasil precisa definir explicitamente o que vai e o que não vai financiar. A regra deve ser clara e válida para todos – indistintamente. É uma decisão dura e impopular, mas é a melhor forma de amenizar a desigualdade. No cenário atual, Rafael é um felizardo. “Melhorei 100% com esse remédio. Parece que foi instantâneo. Logo na primeira infusão, fiquei cheio de pique.” Nas missas de domingo, ele agradece. Toca guitarra enquanto a mãe canta. Com 1,80 metro e 103 quilos, risonho e falante, não poderia parecer mais saudável.

Fonte: Cristiane Segatto, Revista Época, 16/03/2012