É para ontem a necessidade de repensarmos o turbilhão de iniciativas geradas, em decorrência do baixo nível de evidência de muitas das ações, do melhor alcance de esforços escalonados, e, muito especialmente, frente à recente postura prescritiva de pessoal ligado à Acreditação Hospitalar. Tem ocorrido não exatamente relacionada a padrões (esperada), mas a quando e como devem ser trabalhados, não raramente ignorando prioridades consideradas pelos hospitais através de matrizes de gerenciamento e tolerabilidades de riscos ou da genuína e sincera busca pelo possível, desde que, ao longo do tempo, não haja limites (ou seja, melhoria contínua). É a Acreditação Hospitalar que precisa adaptar-se ao tempo que cada organização precisa, e nós, da ponta, bem como os pacientes, não temos culpa da necessidade de um modelo que estimula velocidade para poder ser viável sua aquisição pelos hospitais. A postura prescritiva representa muito controle por quem não assume os riscos, não tem qualquer exposição pessoal às recomendações, quando deveria focar nos padrões e em como as instituições reagem às tendências negativas, já que não existe fórmula mágica para qualidade e segurança.
Ainda em 2013, Robert Wachter, da UCSF, expert em qualidade assistencial e segurança do paciente internacionalmente conhecido e reconhecido, escreveu:
“... nunca estive tão preocupado com o movimento de segurança do paciente como estou atualmente. Meu receio é que nós iremos olhar para trás e ver os anos entre 2000 e 2012 como a era de ouro da segurança do paciente, o que estaria bem se tivéssemos resolvido todos os problemas. Mas nós não conseguimos...
... Como um pai atucanado para sair e chegar ao seu destino final, e que descobre somente no estacionamento da escola que deixou o filho em casa, nós arriscamos deixar para trás nosso movimento de segurança, se falharmos em assegurar que todos estão a bordo enquanto nos apressamos em direção ao futuro...
.... a nevasca de novas iniciativas - todas importantes, mas de forma exagerada - tem gerado sobrecarga. O problema é que ninguém alivia a carga de trabalho para realizar toda esta nova atividade. Quando pilotos de companhias aéreas comerciais passam por testes em simuladores a cada ano, eles utilizam o tempo de trabalho para fazer isto. Quando eles passam 30 minutos completando um checklist antes do vôo, seus salários estão garantidos. Mas, para muitos médicos, estas novidades - aprender um novo método de raciocínio, incorporar uma lista de verificação, ou sobreviver a implantação de um novo sistema de TI - são normalmente atribuições a mais para um dia garantidamente já conturbado. Mesmo para as enfermeiras, que geralmente são assalariadas, novas obrigações como escanear códigos de barras ou mesmo lavar as mãos consumem minutos preciosos em dias onde já falta tempo...
... devemos lembrar que cuidados de saúde são prestados por humanos reais, trabalhando em organizações que são lideradas por outros humanos reais. Ignorando as pressões que ambos grupos são submetidos pode nos levar a fantasiar sistemas maravilhosos em cenários onde continuamos causando danos e mortes.”
Algumas situações ajudarão a entender melhor o cenário considerado por Wachter, bastante atual para nós brasileiros, já que encontramo-nos atrás do movimento norte-americano pelo menos 5 anos. Estaríamos, então, próximos ao momento crítico apontado pelo professor da UCSF.
1. Hospitais devem perseguir sistemática para atendimento de intercorrências nas enfermarias, provavelmente através de sistemas de resposta rápida (SSRs) ou times de resposta rápida (TRRs). Abaixo reflexões sobre como pode ser trabalhado este padrão:
Existe margem na literatura para moldar estes sistemas de diversas formas, podendo variar a especialidade dos médicos participantes, as ferramentas para ativação dos profissionais, entre outros aspectos. A clássica expressão "one size doesn't fit all" (tamanho único não serve a todos) aplica-se muito bem. Mas estão forçando algumas escolhas, com consequências potenciais negativas não intencionais.
Uma destas pressões é pela utilização do escore MEWS (não é objetivo desta postagem revisar a fundo SRRs e seus instrumentos, mas saiba, quem não conhece, que o MEWS corresponde a uma ferramenta de identificação do paciente sob risco de deterioração e progressão para parada cardiorrespiratória). Leia mais sobre TRRs aqui.
Há alternativas mais simples. Mais simples de aplicar, mais simples de treinar, mais simples de auditar e mais simples de gerenciar. Fosse o MEWS muito melhor, ser simples não deveria sobressair. Mas não é. De um modo geral, escores complexos como o MEWS, o NEWS e o PEWS são intrinsicamente um pouco melhores que os ditos escores dicotômicos, do tipo mais simples, mas a magnitude desta diferença é pouco relevante. Muitas organizações também percebem que, sem integração automatizada das informações que abastecem ferramentas que dependem de cálculos e de suporte à decisão clínica nas diferentes vias de respostas previstas a partir das faixas de risco geradas, algo que parece ser bastante fácil não funciona em larga escala da maneira esperada.
Em universo de escores com altas taxas de falsos positivos (vide figura abaixo), a escolha por mais sensíveis pode fazer o pessoal da ponta desacreditar no modelo, ainda mais se acabam sobrecarregados, realidade com a qual a enfermagem brasileira já convive, mesmo sem SSRs nas unidades abertas. Não é a toa que existem evidências de maior número de atendimentos de fato utilizando-se de escores menos sensíveis – o que parece, à primeira vista, contra-intuitivo. Lembremos da citação de Wachter onde alerta que ignorar as pressões a que os profissionais da ponta são submetidos pode nos levar a fantasiar sistemas maravilhosos em cenários onde continuamos não fazendo direito. Experimentos demonstram ainda que o nível de atenção é enfraquecido quando o controle é outorgado demais ao sistema, e um sistema pouco assertivo pode voltar a justificar decisões quase exclusivamente subjetivas, tudo o que gostaríamos de minimizar justamente através de critérios objetivos para ativação da alça eferente dos TRRs (braço de resposta propriamente dita).
A figura ilustra com clareza o quanto captamos tanto sinais quando ruídos. Os primeiros representam aquilo em que é preciso prestar atenção. O ruído é aquilo que deveríamos ignorar. As pessoas ignoram é os efeitos das intervenções em zonas de ruídos, mas basta olhar com atenção e percebe-se que existem. E que são muito frequentemente tão negativos quanto aquilo que se quer prevenir.
Recebi recentemente depoimento muito contundente:
“Já tive e experiência de colocar o MEWS aqui (imposição da qualidade) com o Tasy disparando o alarme direto para o celular do TRR. Precisaria de muitos mais médicos de plantão e financiamento muito além do teto disponível. Suspendemos por ora, para não virar um faz de conta. Em outro hospital em que trabalho é a noite inteira com falsos positivos, insuportável para muito pouca mudança. O MEWS pareceu fazer as pessoas desacreditarem na iniciativa".
Isto que ainda dispunham de automatização parcial. Há um terreno mais fértil para funcionar a alça aferente, pelo menos, com escores complexos se dados vitais são aferidos à beira de leito com captação em tempo real das informações, cálculo automático, até a ativação também automática do plantão médico. Sem isto, com um escore dicotômico é mais fácil o reconhecimento da "mensagem de risco", permitindo ao técnico de enfermagem parar tudo no ato e ativar imediatamente o plantão. Sem automatização desta etapa com escores complexos, muitas vezes o trabalho do técnico é coleta de dados vitais de vários pacientes em série, para então parar em algum lugar para cálculos e registros, momento em que eventualmente identifica um escore de 6 (risco alto) - naquele primeiro paciente que viu quase uma hora atrás. O time de resposta rápida transforma-se em time atrasado. Poderia ser alterado o processo, orientando-se "paciente por paciente"? Gente, quase matamos no Brasil nossos técnicos de enfermagem de tanta sobrecarga... São efeitos colaterais potencialmente invisíveis a consultores externos, mas não pouco importantes. Para uma magnitude de benefício adicional reconhecidamente pequena. E qualquer coisa em que haja intervencionismo ingênuo, ou melhor, pura e acriteriosa intervenção, conterá iatrogenia, com grande risco de prevalecer. Razão porque defendo começar pelos meios mais simples, medir, e pautar uma guinada para caminhos mais complexos muito bem amparada por dados da realidade local - não um ou outro evento isolado (outro grande equivoco que cometemos dos gabinetes de qualidade), mas uma verdadeira tendência negativa.
O gerenciamento de um TRR é melhoria contínua, e faz todo sentido do mundo avançar em caminhos que escapem da máxima simplicidade quando existir clara demonstração da necessidade. Há indicadores clássicos capazes de orientar essas decisões. Existem cenários onde TRRs não são sequer necessários. Há que se conhecer bem a realidade local, pois quanto mais raro o acontecimento que se quer prevenir, menos remediável é, devendo ser sempre analisado sob uma perspectiva ampla, uma olhar para toda a instituição e seus outros riscos. Ainda assim, quanto mais raro o evento, mais confiantes têm se tornado os "especialistas" envolvidos na modelagem destes sistemas, sugerindo existir fórmulas prontas e universais.
2. Outra ocorrência comum é orientarem hospitais que ainda estão dando os primeiros passos em estruturação física e de pessoas nas comissões hospitalares a fazer, na largada, o ideal (para quem acredita na mantra do mais é sempre melhor), comprometendo condições para fazerem o possível. Numa discussão recente sobre revisão de óbitos em instituição de colega, a orientação foi de "obrigatoriamente revisar TODOS". Eu trouxe recentemente ao Brasil Allen Kachalia, Chief Quality Officer at Brigham & Women’s Hospital. Se em Boston pensam e fazem da forma que ele conta neste vídeo (em inglês) - não percam o trecho onde descreve com todas as letras que no Brigham & Women’s Hospital não teriam dinheiro suficiente para revisar todos os casos -, o que passa na cabeça dos consultores brasileiros? Como já escreveu Nassim Taleb, do best-seller A Lógica do Cisne Negro, que serviu de inspiração para algumas reflexões desta postagem, "essa é a tragédia da modenidade: assim como os pais neuroticamente superprotetores, aqueles que estão tentando ajudar são, muitas vezes, os que mais nos prejudicam".
Há algum tempo ando dizendo. O movimento de saúde baseada em evidências, trazendo junto suas noções de estatística, risco residual, custo-efetividade, custo-consciência e decisão compartilhada precisa chegar urgentemente ao mundo da qualidade e da segurança do paciente. Mudar quase nunca é fácil, então deveríamos impor uma atmosfera favorável a escolhas sábias. Turbilhão de iniciativas é contraprodutivo, então por que não um Choosing Wisely da gestão assistencial? Não acontecendo, há risco de médicos e enfermeiros desprovidos de mentes binárias e visões determinísticas não conseguirem andar no mesmo barco... Hoje já quase existe um movimento de gabinete da segurança do paciente e profissionais da ponta pouco conectados, com exceções. Vamos construir um único movimento apenas? De preferência onde a aprendizagem mais valorosa diga respeito ao que evitar, não ao que fazer. Este é o pulo do gato para a próxima fase da qualidade e segurança do paciente nos hospitais brasileiros já envolvidos com os movimentos. Inacreditavelmente ainda existes muitos que precisam começar, que quase nadam fazem. Ainda assim, beneficiar-se-ão de esforços escalonados e de uma uma mentalidade "less is more", com foco nos padrões, menos certezas e muito mais dúvidas. Não as tirem de nós com formulismos, pois melhoria da qualidade empolga e dá resultados justamente quando não funcionamos sob mapas preexistentes da realidade, afastando-nos do ecológico, das tentativas e dos erros. Tudo isto vale internamente para os gabinetes de qualidade na relação com os hospitalistas. Sejam menos impositivos. Conduzam a dança como um bom cavalheiro. Mas deixem-nos participar da escolha do momento e do ritmo.