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Pra não dizer que não falei das próteses – Parte 1

O paraibano Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, melhor conhecido como Geraldo Vandré, é um daqueles compositores no qual a história injustamente colocou num local desproporcional ao seu talento. As gerações mais novas talvez não tenham uma noção muito exata do contexto em que ele se tornou popular, mas, dificilmente, aqueles que frequentaram rodinhas de violão nas universidades e barzinhos da década de setenta e oitenta vão esquecer-se de como seu sucesso mais popular, “Pra não dizer que não falei das flores”, era tocado e cantado, às vezes a plenos pulmões, tanto pela beleza da obra, quanto pelo que ela significava. Mas a semelhança entre essa introdução e o que trata esse texto fica por aqui.

Para aqueles que acham que o propósito desse comentário é justamente acrescentar alguma proposta inovadora de solução para a forma incômoda como convivemos com o problema das próteses no nosso país, vou logo adiantando que nada tenho a somar. Desde que mais uma vez foi trazida à tona recentemente, após uma denúncia no programa “Fantástico” da Rede Globo de Televisão em janeiro deste ano (para quem não viu, acesse http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/01/mafia-das-proteses-coloca-vidas-em-risco-com-cirurgias-desnecessarias.html e http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/01/hospitais-recebem-parte-de-propina-de-empresas-de-proteses.html ), a notícia foi multiplicada e discutida à exaustão em diversos outros meios e redes sociais. Em todos os meios, a reação foi de perplexidade e indignação quanto a essa forma criminosa com que médicos e hospitais tratam a saúde das pessoas que necessitam de uma prótese para a melhora de sua condição de saúde, privilegiando ganhos pessoais envolvendo grandes somas em dinheiro de maneira ilícita, algumas vezes prioritariamente em relação ao bem estar do paciente. Na denúncia em apreço, os envolvidos citados eram entes públicos em sua maioria, mas se engana quem pensa que tal fato não ocorra em hospitais privados: pode ser que nestes o volume de transações seja até mesmo maior.

Este problema é muito antigo, um “câncer” agressivo não erradicado da prática médica na sua relação com o complexo industrial da saúde, com repercussões em toda uma coletividade que, há décadas, aponta para a necessidade de orçamentos mais robustos voltados para as ações de saúde pública. A medicina suplementar, ao contrário daqueles que acham que não apresentam problemas dessa natureza, convive com margens apertadas e ações regulatórias/fiscalizatórias cada vez mais rígidas, eternamente refazendo seus cálculos atuariais e percebendo ao final que as contas não fecham. Em ambos, o somatório de perdas resultantes pode representar ao final um percentual significativo em seus orçamentos, valor esse ainda não mensurado pois não é possível uma estimativa precisa.

Minha preocupação é outra, e diz respeito ao papel do gestor clínico e o quanto esse problema impacta na sua labuta diária.

É dispensável recapitular os condenáveis aspectos morais, legais, éticos e até mesmo religiosos que envolvem a prática de obtenção de ganhos pessoais, muitas vezes em detrimento da saúde do próprio paciente, quando da indicação de órteses, próteses e materiais/drogas/tratamentos especiais. Nesse cenário, a busca por valores ou benefícios diretos ou indiretos (objetivo de toda a cadeia envolvida), tem como origem uma distorção muito própria do meio, e que nunca vai deixar de existir: a assimetria de informações.

A assimetria de informações aqui se constata no comportamento do médico, detentor dos saberes que teoricamente deveriam se reverter em benefício do paciente que o procura, e é quem indica, sugere, induz ou mesmo obriga a aquisição daquilo que julga como necessário para o paciente aos seus cuidados após sua avaliação baseada em suposta expertise.  Quase sempre o faz sem que o paciente, instituição ou fonte pagadora obtenha em tempo hábil alguma forma de contestação, argumentação ou alternativas de solução. A perspectiva de discutir em termos técnicos o que está sendo proposto e da forma como está sendo proposto, é exceção e não regra. É um exemplo clássico em que o conhecimento e manipulação desse conhecimento geram poder. E que poder.

O fenômeno dos incentivos à prática médica, tanto os justificáveis quanto os inaceitáveis, e sobejamente conhecido dentro do campo da Economia da Saúde, infelizmente encontra pouco espaço para discussão nos meandros da administração hospitalar, dos conselhos de classe e dos tribunais em geral, quando deveriam ser aprofundados em nome de contribuição efetiva à sociedade, uma obrigação do ponto de vista pecuniário e moral, e não ficar restrito às teses acadêmicas que tratam do assunto (apesar da enorme contribuição das mesmas para uma melhor compreensão do tema).

O público leigo e um grande contingente de pessoas ligadas ao setor saúde acredita que as situações denunciadas são pontuais e se restringem apenas àqueles casos que ganham maior notoriedade na mídia. Há um equívoco colossal nessa percepção. Negócios obscuros tendo médicos como protagonistas de um sistema que visa lesar orçamentos públicos ou privados em benefício pessoal, mesmo que não tragam prejuízos detectáveis aos seus pacientes, não são tão raros assim.

Em outro aspecto mais negligenciado ainda, talvez por serem mais diluídos no cotidiano da organização de saúde, esses benefícios enviesados são alcançados por médicos através de pequenos ganhos de natureza discutível, e não envolvem próteses, órteses e materiais especiais. Para ficar em apenas alguns exemplos:

* Drogas mais caras são estimuladas na sua prescrição pelos seus representantes comerciais, em detrimento de outras com a mesma função e padrão de qualidade, e com menor custo para quem paga a conta, tendo como contrapartida vantagens para quem as prescreveu;

* Procedimentos em pacientes da rede pública ou da medicina suplementar, dos mais simples aos mais complexos, só são realizados em alguns locais se o paciente contribuir de alguma maneira para uma complementação de honorários (estes anteriormente previstos na prestação do serviço através de tabelas próprias, e tácita ou explicitamente acatados pelo profissional), muitas das vezes sendo evocada uma suposta legitimidade a título de compensação, em função dos valores defasados em relação ao valor que é repassado ao profissional pelos entes pagadores;

*  Exames e outros procedimentos diagnósticos/terapêuticos de alta complexidade são estimulados na sua realização, através de indicações discutíveis e de frágil sustentação, no intuito de gerar receita adicional pela super-utilização, seja para a organização que adquiriu aquele aparato, seja para o profissional ou grupo de profissionais que arcou com sua aquisição (e, portanto, não só tem que pagar pela compra do mesmo como tem que gerar lucro com a utilização deste, quando no âmbito de algumas organizações privadas);

*  A permanência hospitalar do paciente internado além da devida, ou a indicação de internação hospitalar inadequada (fazendo uso, inclusive, de justificativas maquiadas para a permanência dos pacientes aos seus cuidados), principalmente para o profissional que tem muitos pacientes sob sua responsabilidade, traz ganhos em escala para a organização e para o profissional, que recebe uma valor pré-determinado a cada visita que faz. Alguma vezes a visita médica se restringe a dar um bom dia ao paciente e ir embora.

A maneira como o assunto chega às discussões tem um comportamento em forma cíclica e frequentemente hipócrita (recomendo a leitura do texto de Claudia Collucci em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiacollucci/2015/01/1577424-mafia-das-proteses-e-as-reacoes-hipocritas.shtml): alguém, em algum lugar, se utilizando dos meios apropriados, torna pública uma denúncia, geralmente através de um meio forte de comunicação. Fica-se debatendo a questão por algumas semanas, um representante da lei fala sobre penas mais duras, um representante do governo ameaça com resoluções que não saem do papel, alguns “bois de piranha” são presos temporariamente, as redes sociais esculacham a ordem vigente e começam a discutir, discutir e discutir a questão. Efetivamente, não há nenhuma medida de impacto. Nunca houve. E assim o problema volta para a obscuridade, sem deixar nunca de existir, para mais tarde uma nova leva de denúncias promoverem a indignação geral.

Há uma chance real de que nada sério seja feito no futuro porque (tomara que esteja enganado) a pureza de intenção do homem quando o assunto é dinheiro é uma utopia (como sempre é bom lembrar, salvo honrosas exceções). E não se trata de uma exclusividade do nosso país, ou de países com características semelhantes, e nem se trata de um fenômeno recente. No âmbito dos sistemas de saúde em geral, a diferença está no fato de que existem países em que mecanismos regulatórios e fiscalizatórios são mais sérios, dificultando qualquer atitude pessoal ou coletiva suspeita. E em outros não.

Resta o alívio de saber que as práticas listadas acima não são generalizadas. Médicos e demais profissionais de saúde podem ser criticados de diversas formas em suas ações, mas geralmente cumprem aquilo para o qual são treinados, com honestidade e ética acima de tudo.

Cabe ao gestor clínico fiscalizar e coibir abusos na forma como as atividades do Corpo Clínico dentro do hospital sob seu comando ocorre, sejam eles quais forem. Seu universo é composto por tudo que se relaciona à atividade médica. E seu papel de fiscal da boa prática é, de longe, o mais importante.

E, certamente, o mais difícil.