O tema “atenção primária à saúde” (APS) entrou na agenda dos gestores e dirigentes na saúde suplementar. Tem sido incluída em vários eventos setoriais da cadeia da saúde. No entanto, por desconhecimento ou de maneira proposital, a questão tem sido mal abordada e compreendida.
Frequentemente se fala em APS quando se coloca um “gatekeeper” ou porta de entrada para limitar o acesso dos pacientes aos serviços e especialistas ou mesmo quando se adota um “plano acessível” com um pacote limitado de serviços disponíveis ao cliente.
Não há dúvida que, no senso comum, saúde é confundida com acesso a serviços médico-hospitalares. Por isso houve a difusão de produtos vendidos através de clínicas, aplicativos ou à semelhança de tíquete-alimentação. Infelizmente tais iniciativas facilitam o acesso dos consumidores aos serviços, mas somente acentua a fragmentação do cuidado em saúde.
Recente pesquisa feita pelo IBOPE, por encomenda da CNI, chamada Retratos da Sociedade Brasileira-Saúde, aponta que a maioria dos brasileiros realmente aponta que os principais problemas relacionados à saúde se referem ao acesso a atendimento e serviços, como demora em conseguir os atendimentos, falta de hospitais ou de médicos. Certamente tal informação vai ser explorada à exaustão pelos candidatos nas próximas eleições, prometendo mais hospitais, médicos ou pronto-socorros. No entanto, chama a atenção que três em cada quatro respondentes da pesquisa concordam com atendimento por médico de família antes de especialistas e quando questionados se políticas preventivas (tais como vacinação, orientação, controle de doenças crônicas) são mais importantes para melhorar a saúde da população do que a construção de hospitais, três em cada quatro brasileiros (75%) concordam total ou parcialmente, enquanto 21% discordam totalmente ou em parte. Esta pesquisa está disponível no link: https://bit.ly/2B3Mx6f.
Os quatro atributos essenciais da atenção primária à saúde propostos há cerca de 40 anos e estruturados por Barbara Starfield ainda são amplamente aceitos: (a) acesso; (b) coordenação; (c) longitudinalidade e (d) integralidade ou cuidado. O acesso pode ser definido a partir do conceito de “porta de entrada” do sistema e pode ser medido pela facilidade com que o paciente consegue um encontro com sua equipe e seu médico de referência. Além disso, está relacionado a diferentes formas de acesso (presencial, telefone, e-mail) e diversidade de horários disponíveis. É o atributo essencial frequentemente listado como mais importante. A coordenação do cuidado, que está relacionada à atitude de referenciar os pacientes a outros pontos de atendimento e acompanha-los em toda a sua jornada no sistema de saúde. A longitudinalidade significa cuidado ao longo do tempo, passando por todas as fases do ciclo de vida. A satisfação do usuário, bem como o vínculo, está relacionada a esse atributo. A integralidade, a capacidade de ofertar a maior variedade de serviços possível no âmbito da APS que deve, de maneira ideal, incluir, por exemplo, puericultura, pré-natal, cuidados paliativos essenciais e pequenos procedimentos. A ANS em parceria com a OPAS realizou um laboratório de inovação em APS e identificou experiências que buscam uma abordagem mais ampla, envolvendo os atributos da APS. A publicação está disponível no link https://bit.ly/2KOhVVR.
Assim, fica claro que não basta contratar médicos de família ou criar “centros de atenção primária”. É importante realizar a organização do sistema e, neste contexto, se destaca a importância da coordenação do cuidado. Talvez este fator seja mais importante que a mera contratação de médicos de família, pois ele permite uma ação de maior escala, integração com a rede assistencial, uso de registros eletrônicos e telemedicina e a utilização de profissionais que atuam como “navegadores” no cuidado. A organização do sistema com a utilização da APS, em sua integralidade, propicia a mudança do modelo de remuneração focando não apenas nos procedimentos hospitalares, mas no cuidado em saúde.