Longe de ser um setor no qual a remuneração do prestador do serviço está baseada na melhoria do cuidado ao paciente, e perto do agravamento da falta de recursos e da baixa qualidade: este é o quadro atual tanto das esferas pública e privada da saúde brasileira enquanto a lógica assistencial for centrada no serviço ao invés do paciente.
As consequências nocivas de um sistema bem planejado no papel, como é o caso do SUS, mas mal executado na prática, escancaram a urgência de mudanças que, de certa forma, já estão ocorrendo a passos vagarosos – não fossem uma série de percalços, entre eles, os modelos de financiamento do sistema.
De um lado está a saúde suplementar, que atende 50,8 milhões de beneficiários, suportada pelo modelo conhecido como “fee for service”, ou seja, que recompensa o volume e a complexidade de exames e procedimentos, contribuindo para o desperdício e aumento dos custos. Do outro o SUS, idealizado com o paciente no centro, porém marcado pelo baixo financiamento e administração ineficaz.
Como seria praticamente utópico saltar diretamente de um modelo de remuneração baseado na produção (fee for service) ou de repasses pouco satisfatórios para uma alternativa baseada em valor agregado ao paciente (conhecido no mercado como “fee for value” ou pagamento por performance), algumas etapas precisam ser cumpridas para a construção desse ideal.
“Avaliar a performance é mais importante que pagar por ela. O principal desafio é: como avaliar a performance em saúde. Se tiver esta resposta, pagar baseado nela passa a ser relativamente simples. Avaliar por performance é uma obrigação do gestor, seja público ou privado, agora, pagar pelo desempenho é uma estratégia de gestão”, afirma o presidente da 2iM – Impacto Inteligência Médica S/A, César Abicalaffe, e também ex-consultor da ANS para o QUALISS (Programa de Qualificação de Prestadores de Serviços de Saúde) e para o GT Remuneração dos Prestadores Hospitalares.
Para Abicalaffe, somente após três passos é possível reformar o modelo de remuneração. São eles: ter consciência que o paradigma atual precisa ser mudado e em que precisa ser mudado; identificar métricas que mostrem isso e começar a medir (desempenho, qualidade ou valor); além de utilizar incentivos para recompensar os profissionais pelo seu desempenho, utilizando as métricas definidas.
As instituições de saúde costumam esbarrar justamente na incapacidade de terem o paciente como foco, algo extremamente importante para uma transição desse tipo.
LEIA MAIS:
Conheça os modelos de remuneração da Alemanha, EUA e UK
Retrato Público
Quando se trata de remuneração, o SUS aparece em vantagem se comparado ao privado. Algumas experiências de vincular incentivos financeiros à qualidade do serviço prestado já são realizadas em instituições paulistas e de outros estados – por meio de Organizações Sociais (OSS) – que já associam parte do financiamento ao cumprimento de metas e indicadores e, dessa forma, podem ser considerados contratos por desempenho.
O secretário-adjunto da Saúde do Estado, Wilson Pollara, defende o modelo das Organizações Sociais – hoje são 40 hospitais sob este regime no estado de São Paulo – mas critica a impossibilidade de aplicar o modelo em hospitais antigos, pois funcionários públicos estáveis (estatutários) não podem associar seus salários ao desempenho ou produtividade.
“Ainda não temos uma luz no fim do túnel. O dinheiro do governo federal é pouco e mal gasto pelas instituições”, diz Pollara, elencando uma série de barreiras como a falta de dados estruturados, questões trabalhistas, limitação do uso de dinheiro público, etc.
Para o Ministro da Saúde, Arthur Chioro, o modelo de financiamento do SUS está em transição desde a década de 90, quando o então ministro Adib Jatene deixou de pagar os procedimentos de atenção básica com base na tabela SUS e passou a ter um piso de atenção básica fixo e um variável de acordo com a quantidade de equipes de Saúde da Família. “Dos recursos que são transferidos regularmente pelo Ministério para estados e municípios, mais de 50% já não são mais baseados na tabela SUS, mas em modalidades de incentivo”, ressaltou, durante coletiva de imprensa ao Saúde Business em maio deste ano.
Para mudar a lógica de produção dos serviços de urgência, algumas medidas são feitas de maneira gradual, como a contratualização da assistência, a implementação de metas de qualidade e de produção e a precificação dos serviços. “O programa ‘Mais Especialidades’ será lançado com uma outra modalidade, mais moderna, que está sendo praticada na Inglaterra, Espanha, Portugal, Canadá e outros. E progressivamente vamos transformar a tabela em uma referência de informação de produção, um valor quantitativo. Mas é claro que um sistema de referência quantitativa sempre vai precisar existir para você saber quantos procedimentos foram produzidos”, explicou o ministro.
Atualmente 11,5 milhões de internações são realizas no setor público por ano no Brasil e mais de 2 bilhões de consultas médicas, quantias que somadas a todos os procedimentos chegam a despender mais de R$ 6 bilhões de recursos. “Precisamos ter um sistema de informação que consiga quantificar e qualificar e, assim, romper com a herança do Inamps, que prioriza a oferta do procedimento e não o cuidado integral. O que as pessoas precisam não é de um exame ou de um procedimento, é de um conjunto de cuidados que passa pela consulta, exame, procedimento, assistência farmacêutica, reabilitação. É deste jeito que vamos mudar o pagamento do SUS”, enfatizou Chioro.
Retrato Suplementar
Na opinião de Abicalaffe, as Resoluções Normativas (RN) do QUALISS deram sinais de que o setor estava evoluindo para medir qualidade, mas as questões políticas e técnicas colocaram a proposta em “banho-maria”. Entretanto, a RN 364 (de 11 de Dezembro de 2014) trouxe o conceito do Fator de Qualidade, que deve estar presente nos contratos entre as operadoras e prestadores. Com isso, o prestador (seja médico ou hospital) terá que ter alguns índices de qualidade para conseguir receber, no máximo, o índice da inflação do período.
“Sem ser muito pessimista, vamos tentar enxergar isso como uma oportunidade para estabelecer nova relação contratual entre os financiadores e os prestadores”, afirma Abicalaffe, reiterando que não adianta já definir a forma de pagamento, enquanto não definir o que é importante medir para, definitivamente, entregar valor ao paciente.
No Caminho
É quase óbvio que a evolução do sistema de saúde brasileiro depende de ações em conjunto entre o prestador e a operadora, e também de clareza quanto aos critérios de avaliação do cuidado prestado.
Exatamente neste sentido, o grupo Amil, depois de ter sido adquirido pela americana United Health, começou a testar em sua rede própria a ferramenta Milliman Care Guidelines, que auxilia nos guidelines da instituição. Outras medidas, como manter um funcionário dentro do hospital com a responsabilidade de agilizar o processo de autorização de procedimentos e minimizar, ao máximo, indicações equivocadas, também foram adotadas.
“A intenção é estar mais próximo dos prestadores para identificar rapidamente se o procedimento foi bem indicado, ao invés de mandar 30 relatórios”, explica o diretor de unidades próprias do Grupo Amil, Charles Souleyman. O objetivo é agilizar processos, mitigar riscos, colher informação clínica e fazer comparativos com base nos guidelines. “A partir disso, vamos criando evidência local brasileira para poder sentar com determinado grupo, hospital, e tentar encontrar oportunidades de dar mais eficiência ao processo”.
Mesmo ainda sob o modelo “fee for service”, Soulleyman acredita que este é um começo para se construir uma base de informação sólida e indispensável para dar os próximos passos rumo ao “fee for value”.
Enquanto o ideal remuneratório não chega, os modelos alternativos que começam a se desprender da lógica de produção, em geral, demostram um maior compartilhamento de risco, previsibilidade de custos e melhorias na qualidade assistencial. Todos os caminhos de sucesso mostram que a premissa para a mudança é qualificar os atendimentos.
Não por acaso instituições como Sírio-Libanês e Unimed-BH estão de olho no DRG (Diagnostic Related Groups), traduzido como Grupo Relacionado de Diagnóstico, que tem o propósito de qualificar os atendimentos de internação, segundo o grau de utilização dos serviços prestados. Outros exemplos de prestadores que saíram na frente no quesito avaliar com base no desempenho e qualidade foram o Hospital Nove de Julho (SP), Samaritano (SP), VITA (PR), entre outros.
Os movimentos no Brasil ainda são lentos, os critérios para medir, avaliar e, quiçá, remunerar ainda são nebulosos, sem contar os desafios culturais, éticos, legais e estruturais envolvidos, mas não podemos negar que a largada foi dada e a pressão para aqueles que ainda não saíram do lugar só tende a aumentar.
*eBook Pagamento por Performance, escrito por André Medici (Economista Senior do Banco Mundial), César Abicalaffe (Presidente da 2iM) e Leandro Tavares (Diretor da ANS)
**Esta reportagem foi publicada na revista Saúde Business (julho-agosto-setembro). Leia a publicação na íntegra.