Criado com o objetivo de ampliar o acesso, melhorar a qualidade e reduzir os custos dos planos de saúde nos EUA, aparentemente, o denominado “Affordable Care Act” – nome oficial do programa – não entregou tudo o que prometeu.
Para contextualizar o Obamacare. Nos Estados Unidos, o sistema de saúde público não é universal. Lá, o governo fornece assistência à saúde apenas para pessoas de baixa renda, via o programa Medicaid, e para as pessoas a partir de 65 anos, via programa Medicare. Desta forma, a população não coberta por esses dois programas precisa contratar plano de saúde. Porém, os Estados Unidos têm a saúde mais cara do planeta e nem todos que precisam conseguem contratar plano de saúde por lá, mesmo hoje, com o Obamacare.
Os números da saúde norte-americana impressionam. É o país que mais gasta com saúde no mundo, em valor total, tem termos per capita e em percentual do PIB. O gasto anual total com saúde por lá é de US$ 3,2 trilhões (2015). É quase o dobro do PIB brasileiro. Em termos per capita, a despesa é de quase US$ 10 mil por ano, enquanto em países desenvolvidos esse valor está em torno de US$ 4,5 mil/ano. Por fim, o gasto com saúde é quase 18% do PIB americano, enquanto que nos países desenvolvidos esse valor é próximo de 9%.
Outro fato importante está na concentração dos gastos de saúde em um número relativamente pequeno de pessoas. Cerca de US$ 1,6 trilhão, ou 50% dos dispêndios anuais com saúde, são gerados por 5% da população, ou seja, aproximadamente 16 milhões de pessoas. Isso mesmo, o gasto médio per capita dessas pessoas é de US$ 100 mil por ano, dez vezes o padrão médio da população. São pessoas que acessam os serviços de saúde com mais frequência e cujos serviços são mais caros, boa parte deles doentes crônicos e idosos, esses últimos cobertos pelo Medicare, o qual tem um gasto anual de US$ 650 bilhões. Por outro lado, os 50% dos americanos que menos gastam com saúde são responsáveis por apenas 3% da despesa anual com saúde do país.
E, mesmo assim, nem todos nos EUA têm cobertura de saúde, seja pública ou privada. De 1995 a 2013, o percentual dos americanos abaixo de 65 anos e sem qualquer cobertura de saúde flutuou em torno de 16,5%. Mas, o Obamacare, que começou em 2010, conseguiu reduzir esse percentual para 10,5%, em 2015.
Se, por um lado, o acesso a planos de saúde aumentou, o mesmo sucesso não veio em relação à contenção dos custos. Sobre isso, um fato diz tudo: em 2017, em metade dos estados americanos, o reajuste na mensalidade do plano de saúde do Obamacare será de pelo menos 20%. E, em oito estados, os reajustes serão de pelo menos 30%, chegando a 116% de aumento no Arizona. Um outro fato é igualmente alarmante: em todos os estados as seguradoras de saúde estão saindo do mercado do Obamacare, porque estão perdendo dinheiro, diminuindo em muito as opções de seguradoras aos beneficiários. Em 2016, apenas 2% dos beneficiários não tinham escolha e contavam com apenas uma seguradora ofertando planos de saúde do Obamacare em sua localidade. Em 2017, este percentual será de 21%.
O que deu errado? Em resumo, o Obamacare violou princípios básicos necessários à viabilidade dos seguros. Foi permitido que pessoas contratassem seguro saúde com cobertura para doenças preexistentes. E essa contratação foi turbinada pelo direito a renovação anual automática, por subsídios nas mensalidades e por limites máximos para as mensalidades dos mais velhos. A mensalidade para 64 anos não pode ser superior a três vezes a mensalidade de que tem 21 anos, criando um subsídio entre as faixas etárias. Já a multa anual para quem não contratasse seguro saúde foi fixada em US$ 695 por adulto, valor baixo se comparado ao custo de ter seguro saúde.
Logo, ao longo dos anos, o que ocorreu é conhecido por “death spiral”, ou espiral de seleção adversa. A cada ano o custo per capita vai aumentando, os mais saudáveis saem e permanece uma proporção cada vez maior de menos saudáveis. No ano seguinte, o custo aumenta de novo e o fenômeno se repete. O Obamacare criou períodos específicos de contratação a cada ano, para tentar evitar que as pessoas esperassem ficar doentes para então contratar plano de saúde. Porém, os fatos mostram que isso não funcionou. No fim, prevaleceu o desincentivo de contratação por pessoas mais saudáveis.
No Brasil, o fenômeno de inviabilidade há tempos atingiu os planos de saúde individuais, simplesmente porque as regras do jogo tornaram a sua oferta um negócio de altíssimo risco para a maioria das operadoras. Antes da regulação dos planos de saúde pelo governo, a seleção adversa já existia nos planos individuais, mas o produto era viável por conta de maior flexibilidade na formatação e reajuste de mensalidades e na definição coberturas.
Em 2003, três anos após a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), os beneficiários de planos individuais com 59 anos ou mais já eram 17% do total, enquanto esse número para a população brasileira era 9,1%. Em 2015, os planos individuais já tinham 24% de pessoas nessa faixa etária, ante 12,6% da população brasileira, fenômeno explicado pelo envelhecimento populacional. Porém, a regulação criada pela lei 9.656/98 engessou as coberturas em patamares que os tornaram caros demais para muitas pessoas. Além disso, a partir de 1999 o governo passou a controlar o reajuste anual dos planos individuais, permitindo reajustes máximos muito aquém da variação de custo percebida pelas operadoras, que passaram a acumular prejuízos nessa operação. Ao mesmo tempo, o rol mínimo de coberturas foi sistematicamente ampliado a cada dois anos, sem a possibilidade de uma contrapartida na adequação das mensalidades. Uma conta que, por si só, já não fechava.
Porém, muito da inviabilidade dos planos individuais veio a partir de outra lei, o Estatuto do Idoso, que, desde 2004, fez com que a última faixa etária dos planos de saúde começasse aos 59 anos, sendo que a regulação da ANS ao mesmo tempo exige uma mensalidade para essa faixa que não supere em seis vezes a mensalidade da faixa etária até 18 anos. Com o rápido envelhecimento populacional, principalmente dentre os idosos, definitivamente essa conta não fecha.
Pelo visto, as experiências nos EUA e no Brasil mostram que governos e legisladores, com as melhores intenções de proteger consumidores e ampliar a cobertura de planos de saúde, acabam por vezes em criar regras que inviabilizam a oferta desses planos, resultando no oposto do desejado.
Fica então como aprendizado que as soluções, tanto para os EUA quanto para o Brasil, encontram-se na reversão das regras falhas que inviabilizam a oferta de planos de saúde. De nada adiantará o governo Trump desconstruir o Obamacare se não tiver esse princípio em mente. Enquanto isso não acontecer, a situação apenas tende a se agravar, lá e aqui.